40 poemas
(Porto, Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 2020-2022)
1ª edição, Quetzal, Lisboa,
Janeiro 2023, esg.
capa de Rui Cartaxo Rodrigues,
a partir de Vista de Delft, de Johannes Vermeer
direcção literária de Francisco José Viegas
2ª edição, Quetzal, Lisboa,
Janeiro 2023
3ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa, Abril
2023
> entrevista TSF
> entrevista Rádio Renascença
> entrevista Antena 1
> encomendar o livro na Bertrand, na Wook, na Almedina ou na Fnac.
§
VICENTE ARAGUAS, La
Región, Galiza, 7.4.23
«ABERTO
TODOS OS DIAS» DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES
«A poesia de João Luís Barreto Guimarães oscila, sempre entre a contemplación da História, a ironia sobre as cousas comuns e cotiás, a transformación dos sentimentos en meditación sobre o paso do tempo e a construcción dun universo próprio
Ler a João Luís Barreto Guimarães, poeta portugués de
primeira liña, a quen presentei hai anos en Madrid, por mor da publicación dun
libro seu en Vaso Roto, é para min asunto prácido que me leva aos límites da
ataraxia. E iso sen necesidade de máis beberetes que a poética que practica
este autor, polo demais médico, cal o teñen sido outros escritores, por máis
que algúns cal o noso Castelao,
rexeitaran a práctica galénica por amor á humanidade, seica.
Mais isto é, para o
caso, anécdota, que o categórico é que Barreto
Guimarães é poeta de fondo (de catálogo, tamén).
Deses que debaixo dunha tona sinxela agachan
dinamita, coa que furar tuneis polos que chegar
á poética elevada. Tan alta, tan alta que con el un pode tomar baños na praia de Moledo, que non resulta para
mín en absoluto allea, sentindo case que o vento nas costas, facendo do corpo
do lector embarcación. Estamos diante dunha poética non soamente visual mais
sensitiva, que ulttrapasa a raia do que se ve para múdalo nun entrañamento
total.
Algo semellante ao que
acontece coa pintura de Vermeer, e non é causualidade, supoño, que
os artífices da moi fermosa edición deste libro, Aberto todos os días, teñan botado man de “Vista de Delft” para abrir un volume que nos fala dunha
poética, como de garda, aberta - e o título en absoluto engana - a todas horas.
Na que se descubren as cartas dunha baralla non nada trucada, pola que desfilan
barcos, garzas, gardachuvas, piscinas do inverno, ou eses veráns como ritos
morredeiros, para volver nacer como o fai a poesía deste autor, renacido
decote. Eis o don da poesía auténtica, dun dos autores lusos máis chamativos do
momento, galardonado neste
libro co “Pessoa 2022”, un
premio moi competente cal o que supón este poeta da excelencia, que nos mostra
xa no comezo do seu manual un devir cotián, con ese “Há unha mᾶo cheia de coisas à espera de acontecer”. Tal como agoiro dun
futuro que o espírito poético de Barreto Guimarães dá parado. E iso é ou debera a poesía. A deste
poeta, que vive no corazón do Alto Minho. Quen de nos transmitir a música
calada, de San Juan de la Cruz, entre a realidade e un soño
viaxeiro, pero que non se describe “in situ” senón despois de que o silencio se
nos faga pouso e paisaxe. Algo así.»
CARLOS FIOLHAIS, De
Rerum Natura, 24.3.23 (também em As
Artes e as Letras)
«ABERTO
TODOS OS DIAS» DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES
«O
livro Aberto todos os dias (Quetzal) é o mais recente do médico-poeta portuense João Luís Barreto Guimarães,
distinguido no final de 2022 com o prémio Pessoa.
Confirma o que já se sabia: o autor é um dos mais originais poetas portugueses
da actualidade. Os leitores que, levados pela leitura deste livro ou dos outros
mais recentes (Mediterrâneo, 2016; Nómada, 2018; e Movimento, 2020, todos do prelo da Quetzal e todos não só premiados como
objecto de traduções noutras línguas), queiram conhecer a obra integral de um
autor que ensina poesia aos estudantes de Medicina tê-la-ão no volume de poesia
reunida a sair muito em breve. O tema maior do seu discurso poético é o tempo.
O poeta serve-se de momentos do quotidiano para, usando por vezes fina ironia,
falar da condição humana no tempo que corre.
A
capa - lindíssima - do livro é a Vista de Delft do pintor holandês Johannes Vermeer. Pintou um panorama da
sua cidade, segundo um físico que estudou o assunto, às 8 h da manhã do dia 3
de Setembro de 1659, deixando-nos uma obra-prima que pode ser vista na
Mauritiushuis em Haia (ou, por estes dias, na grande exposição de Vermeer no Rijksmuseum de Amesterdão).
Trata-se de um quadro famoso na história da literatura pois o escritor francês Marcel Proust estava apaixonado por ele
a ponto de o ter referido num dos volumes (A Fugitiva) de Em busca do tempo perdido. Ele conta aí um episódio autobiográfico: quando foi visitar uma
exposição em Paris que exibia o referido quadro com o intuito de observar um
pedaço de muro amarelo que lá aparece, sentiu-se indisposto. No romance, o
narrador descreve um escritor nessa situação que coloca num dos pratos de uma
balança esse bocadinho de muro, magnificamente pintado, e no outro prato toda a
sua vida, e a seguir falece repentinamente. Esse pedacinho de muro pode representa
os pormenores da vida que Barreto
Guimarães observa e transmuta em poesia tal como Vermeer transformou um muro em arte pura.
Escritos
em tempos de Covid (a nuvem negra paira por cima do quadro!), os poemas deste
livro celebram o regresso à vida «aberta todos os dias». Divide-se em quatro partes, retiradas de
locuções latinas usadas no Renascimento como máximas: «locus amoenus», lugar ameno; «beatus ille», bendito aquele; «tempus fugit», o tempo voa; e «carpe diem», goza o dia. É precisamente nesta última
arte que aparece o poema que dá o título ao livro. É bem representativo da
poesia do cirurgião plástico que, sem pertencer a nenhuma escola literária, tem
projectado no estrangeiro a poesia em português. Vale a pena ler o seu início:
«O mundo/ aberto lá fora. Difícil
cansar-me dele/ O céu/ a entrar pela janela. O músculo do homem comum./ As
laranjeiras de Córdova. Brindar com/ água da/ chuva. Os peixes do Nilo urinando
na/ mesma água onde nadam. O vinho que fez/ um estágio nas caves do Douro/ e passou./
A lua a quem eu uivo cada noite/ (em segredo). Um relâmpago à janela:/
electrocardiograma/ de Deus (…).»
Chama
deste logo a atenção os diferentes tamanhos dos versos que assinalam um ritmo
variável, num poema que é afinal uma lista de coisas do mundo, erguidas, como o
poema diz no final, «com a luva/ da linguagem.» A ironia sobre o vinho do Porto exemplifica o humor do poeta (o
humor não passa de uma maneira de resistir ao tempo, isto é, de ignorar a
morte). O uso de parêntesis, como na frase sobre o uivo é um dos seus
artifícios (há mesmo um poema intitulado «entre parêntesis») E a metáfora do electrocardiograma é uma
imagem forte, que serve para mostrar como é forte o coração de Deus.
Mais
adiante no mesmo poema cruzam-se duas famosas estátuas: «(…) A
Vitória de Samotrácia parecendo atrasada/ perguntando quelle heure est–il? à estátua da/ Vénus de Milo.» Não se pode deixar de sorrir, em primeiro
lugar por as duas serem motes literárias – a Vitória de Samotrácia equivale a
um automóvel de corrida para Filipo
Marinetti no seu Manifesto Futurista e a Vénus de Milo equivale à Vénus de Milo para Álvaro de Campos; depois, porque
nenhuma das Vénus pode usar relógio de pulso por não terem braços: e,
finalmente, por as duas, feitas de puro mármore de Paros, serem perfeitamente
intemporais. Como podem quaisquer estátuas gregas querer saber das horas?
O
tempo é um dos grandes mistérios do mundo e, por isso, um tema continuado da
poesia. Na Segunda Lei da Termodinâmica, a única lei física que permite
distinguir entre passado e futuro, aparece uma grandeza chamada entropia que
cresce inexoravelmente nos sistemas isolados. Charles P. Snow disse, na sua famosa conferência de 1959 sobre «as duas
culturas», que não conhecer Shakespeare era tão grave como não
conhecer a Segunda Lei. A entropia é uma medida da desordem, isto é, o futuro
distingue-se do passado por ser mais desordenado. O poeta do Porto joga com o
tema universal da desordem quando refere a desordem dos «barcos na
Cantareira», das árvores de fruta no
pomar ou dos amigos sentados a uma mesa, em três dos poemas. A tensão entre
ordem e desordem está, de resto, omnipresente.
Para
os seres humanos, o grande problema do tempo é não serem eternos. O tema da
morte é eloquentemente tratado no poema «Comentário sobre os velhos» (o poeta é irónico: «Alguém tem de/ ir
à frente. a ir alguém/ que vão/ os velhos (…) ou no poema «Autorretrato (ao cinquenta e
cinco anos)» (“A/ cada noite que passa os pés/ensaiam no leito/ a sua/ posição
final. A estátua definitiva (…)». A
ironia aqui é o poeta dizer que acordamos, normalmente, com os pés em forma de
V de vitória (ou em forma de W, se há dois corpos, acrescenta num parêntesis).
Um
grande poeta a seguir com grande atenção. Ainda tem muito tempo pela frente…»
VAMBERTO FREITAS, Açoriano Oriental, 10.2.23 e Diário
Insular, 28.2.23
MUITO MAIS DO QUE A
POESIA DO QUOTIDIANO
“Escrever é / fazer existir o que antes
não existia / como este fósforo maduro que agora seguro na mão / vai ser chama
/ já é cinza.”
João Luís Barreto Guimarães, Aberto Todos Os Dias
«Por certo que o poeta João Luís
Barreto Guimarães tem sido publicamente muito elogiado nestas semanas
recentes após ter recebido o Prémio Pessoa, 2022. Já era muito
conhecido e apreciado no nosso país pelos mais atentos à grande literatura. A
sua poesia tem sido também muito comentada ao longo dos anos pela crítica
internacional, após traduções em várias línguas, alguns desses volumes
premiados em Portugal, assim como nos Estados Unidos, Macedónia e Itália.
Retiro toda esta informação da sua bibliografia de capa no seu mais recente
livro, Aberto Todos Os Dias. A verdade é que na azáfama do dia e da leitura
generalizada alguns de nós não chegámos às suas páginas até à chamada de
atenção na nossa imprensa nacional logo após esta outra e recente distinção.
Tratei de imediato colocar na minha estante alguns dos seus livros (começou a
publicar em 1989 com Há Violinos na Tribo), os que encontrei
nalgumas livrarias, quando já muitos outros os procuravam: O Tempo
Avança por Sílabas (antologia de 2019), Nómada e Movimento.
Entraram bem na minha casa, pela originalidade das suas linguagens e pela forma
continuada que cada poema toma, quase sem que o leitor se dê conta tanto do
simbolismo que cada objeto, personagem ou olhar lhe provoca, a narrativa dos
dias e dos momentos vividos e lembrados, os significados de uma vida que
permanecem na memória e consciência de quem procura perceber um pouco mais o
que à primeira vista parece apenas um incidente ou encontro banal, tudo o que
geralmente estaria condenado ao esquecimento. A poesia de Aberto Todos
Os Dias é como que um eloquente silêncio, um murmúrio que nunca mais
nos deixa na liberdade de não pensar, na liberdade de simplesmente existir num
vaivém de rotina e gestos que, só aparentemente, nada influem na nossa solidão,
ou na companhia de outros seres significantes. Cada poema é de uma ironia a um
tempo leve e dilacerante quando nos damos conta de que a nossa vida é, quase no
seu todo, feita de nada mais do que estar tentativamente em paz enquanto
seguramos a sanidade possível no tremor e incertezas constantes a cada minuto
que passa. Uma mão cheia de coisas à espera de / acontecer. O copo /
quase a / partir. / O prazo quase a acabar…
A sequência de Aberto Todos Os Dias vem
nomeada em secções (locus amoenus, beatus ille, tempus fugit, carpe diem)
num andamento que nos relembra muito do que olhamos e não vemos, muito do que
pensamos mas não retemos, muito da vida quotidiana entre os que nos rodeiam no
trabalho ou no lazer momentâneo, até à viagem realizada ou imaginada com os
chamamentos a outros lugares, a outros poetas, a outras vivências que diferem
só nos seus fusos horários pelo mundo fora, cada geografia quase sempre ocupada
num vazio próprio. João Luís Barreto Guimarães é considerado
pela crítica como “poeta do quotidiano”, poeta das supostas pequenas
coisas que nos seus versos tomam o brilho que não havíamos notado antes, e será
também um poeta de grande alcance perante a História que todos vivemos,
expressa ora numa metáfora, ora na menção de um único e reconhecido nome. A
clareza das suas palavras fazem-nos lembrar um Robert Frost ante
a beleza sem idade de uma árvore florida, ou um T. S. Eliot na
sua poesia pós-terra erma, quando este vai ao encontro da sua própria pessoa e
condição de vida. Barreto Guimarães é médico, mas só raramente
o leitor se dá conta desse facto nesta poesia. O que acontece é que o mais
ínfimo pormenor da sua observação de cada instante acaba num verso, uma vez
mais, que nos transmite tudo o que passa a ser essencial à nossa empatia ou,
pelo contrário, ao estranhamento e distanciamento perante o retrato pintado em
palavras. Sair de si e caminhar para o mundo, ir ao encontro do outro nas mais
diversas circunstâncias, vividas ou imaginadas, fazer que cada palavra se
encaixe num canto poético, numa forma de balada filosófica que vale a pena
memorizar e citar quando queremos saber um pouco mais de nós próprios.
“Se amanhã / vires um miúdo na calçada
portuguesa / (bicos dos pés no calcário / tentando evitar / basalto) impondo-se
o desafio de não / poder pisar cor preta / já tens aí o / poema.”
O uso de parêntesis é parte de um
recurso técnico, muito comum nos poemas de João Luís Barreto Guimarães,
como aliás já outros o tinham notado. É um modo, afirmam outros críticos, de um
aparte que explica ou contextualiza um verso ou outro, ou o poema no seu todo.
É ainda a habilidade literária de tornar cada verso uma narrativa, na recriação
de uma “personagem”, esse pormenor que nos permite outra visualização, o tal
olhar o momento agora poetizado. Abertos Todos Os Dias abre com
uma retoma do livro Movimento que antecede a obra
presente: “A margem do rio desenha-se / com luzes que bruxuleiam /
quando caminhas contigo: é inquietação / o que sentes? / Vê se mudas isso em
ti.” É um outro modo de dizer ao leitor que a narrativa tem outros
inícios, que a continuidade não muda de forma de livro para livro, reforça a
continuidade temática do autor: os dias e noites vividas, os instantes que
marcam, o chamamento constante a outros poetas nacionais e estrangeiros, em
menção direta, nas epígrafes, em alusões-outras – a luz lançada sobre as
palavras. A clareza desta poesia esconde em si toda a complexidade interior
sentida, percebida pelo poeta. É certo que outros escritores portugueses
contemporâneos também cultivaram a arte de dizer o que para a maioria de nós
tinha ficado esquecido, silenciado, o poder das pequenas coisas, dos momentos
diários, o significado profundo que os nossos mais chegados têm para o nosso
modo de ser e estar. Insista-se na literatura não só como um jogo de palavras e
invenção pura, mas ainda como o espelho simultaneamente claro, distorcido,
múltiplo, a imagem devolvida a qualquer ser humano no mais distante e escondido
recôndito. A urbanidade humanizada tanto vê a criança a brincar aos pulos, como
reconhece a dor e a alegria da sobrevivência dos marginalizados e oprimidos
entre nós.
“O papel da poesia – disse João
Luís Barreto Guimarães a Valdemar Cruz numa
entrevista ao Expresso pouco depois de receber o Prémio Pessoa
– também é escrever sobre tantas coisas que nos passam ao lado
ou que preferimos olhar para o lado quando acontecem. É o problema da
indiferença e dos interesses que respondem mais às necessidades de quem dirige
se manter naquela posição e enganar o povo com pão e circo. O papel da poesia é
também escrever sobre o feio, sobre o horrível. A poesia não tem que ser
bonita. Tem que ser harmónica, no sentido em que cada palavra transporta em si
uma imagem e um som. O poema vai repintar uma certa realidade. Mas o poema pode
terminar de uma forma disfórica. Pode ser feio. Pode ser uma cacofonia que
custe dizer. Acho muito importante o poeta contemporâneo não ser autista da sua
própria sociedade e achar que a poesia é meramente um divertimento, ou uma arte
de salão, uma arte burguesa, que incumpre a sua função política, social e de
resistência...”.
Para mim, é bom ler isto, vindo de quem
vem. Passada a euforia da poesia do Nada, arrogantemente académica,
indecifrável na sua oca pretensiosidade, que mais parecia concorrer com o
preenchimento de palavras cruzadas no jornal, sinalizando nada mais do que
informação enciclopédica. Eis um regresso da arte, nas palavras acima citadas,
também como resistência à desorientação dos diversos poderes que comandam as
nossas sociedades, que se querem abertas, democráticas, decentes. A arte não
tem de ser, assim mesmo, panfleto ideológico. Tem de ver o mosaico humano no
seu todo, apontando o desvio arbitrário de cada quadro. A literatura contém em
si o riso e o choro – a humanidade na sua contingência, a luz em “tempos escuros”,
parafraseando a grande pensadora política e cultural que foi Hannah
Arendt. Um professor meu dizia-nos numa faculdade americana: não há nada de
desprezível em gostarmos de uma sinfonia de Beethoven e de uma
canção dos Beatles. Só que temos de saber decifrar a diferença
entre uma e outra composição, tudo no seu contexto próprio. Como na arte
literária.
♦ João Luís Barreto Guimarães, Aberto Todos Os Dias,
Lisboa Quetzal, 2023. A entrevista aqui citada vem na Revista do Expresso,
intitulada “A caneta ou o bisturi/Prémio Pessoa 2022”,
na edição de 30 de Dezembro, 2022, e conduzida por Valdemar Cruz, com fotos
de Rui Duarte Silva.»
JOAQUIM MARGARIDO, Blogue Erros meus, Má fortuna, Amor ardente,
1.2.23
LIVRO: "aberto todos os dias"
«“Já repararam / no bote (pintado a
preto e branco) / naquela curva do rio onde / a cidade chega ao fim / dançando
quase / ao acaso a cinco ou seis metros da margem / (um remo para cada lado
qual / petiz ao acordar) / o ocre vivo / do crepúsculo enchendo de cor / o
cenário onde ninguém o navega / nem o reclama para si? / A garça / já.”
[poema “Aquela garça ali”,
de João Luís Barreto Guimarães]
Doze livros depois de “Há Violinos na Tribo”,
edição de autor de 1989, João Luís Barreto Guimarães volta a
inquietar-nos com “aberto todos os dias”, a sua mais recente criação. O
livro surge menos de um mês após a distinção com o Prémio Pessoa 2022
e nele o poeta regressa aos pequenos-nadas de que a vida é feita, olhando de
forma atenta o seu (e nosso) quotidiano. A familiaridade que brota dos espaços,
dos tempos, das situações, gera no leitor a maior das cumplicidades. Lúcido e
preciso, sem dispensar a ironia, o olhar de João Luís Barreto Guimarães traz
ao nosso encontro as imagens e os sons dos dias repartidos entre a prática
médica, uma caminhada à beira-rio ou os momentos passados à mesa do café. A sua
poesia convida-nos a ver a cidade que se afadiga para ir jantar a casa, os
pequenos avanços que trazem sempre retrocessos, a maçã de Eva a pedir uma
segunda dentada, o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha, os
enfermeiros exaustos que saem de mais um turno, um ministro que mentiu. A isto
respondemos com um sorriso, certos de que o convite é tudo menos
inocente.
Sorrimos quando o poema se faz termo de
utilização do livro, a pedir que seja lido e aceite. Ou quando começa a
construir-se a partir do momento em que a página se vira sobre si. Ou, ainda,
quando se explica, com calma, numa introdução à poesia. Faz-nos bem, o poema.
Este poema de um minuto que nos leva a olhar o céu e a ver num relâmpago um
electrocardiograma de Deus, nas unhas roídas luas que nascem dos dedos, no sol
que passa exactamente por entre os gargalos das garrafas que estivemos a beber
o solstício da amizade. Não conseguimos olhar para a poesia de João
Luís Barreto Guimarães sem ver nela a vitalidade de Miguel
Torga na sua relação com a terra, a musicalidade de Eugénio de
Andrade na sua relação com a alma, a luminosidade de Sophia na
sua relação com a vida. A diferença estará nas linhas, não aquelas com que o
poema se cose, mas as que se aproximam ou se afastam de uma baleia que deu à
praia sem vida, de um quarto de hora numa fatia de pizza ou de uma torneira que
administra 30 gotas por minuto na boca do lavatório. Alguém tem de amar o
vulgar.»
CRISTINA NOBRE, Jornal de Leiria, 4.2.23
João Luís Barreto Guimarães (2023) aberto
todos os dias OU poéticos reflexos na água
O autor recebeu o prémio Pessoa em 2022
e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia publicado
depois dessa consagração
«Quando abri o ano de 2022, neste jornal de
província, com texto de opinião sobre movimento (2020) de João
Luís Barreto Guimarães, gravei-o na história literária com os dados bio e
bibliográficos mínimos, acrescidos da referência às várias traduções e prémios
que a sua obra poética tinha recebido. Movimentei-me entre um paradigma antigo,
clássico, e outro mais recente, ligado à receção-canonização-comercialização
como instrumentos para introduzir um ‘objeto da arte literária’ a quem o
desconhece/ia. No prazo de um ano (vale a pena referir o(s) confinamento(s) ou
todos diferentemente o(s) conhecemos?), o autor recebeu o prémio Pessoa em
2022 e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia
publicado depois dessa consagração: (re)abre 2023 (embora, antes do índice
final, o leitor seja informado que os poemas nele gravados foram “escritos
entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em
algumas cidades estrangeiras.”, opus cit., p. 75, o que pode baralhar a
cronologiatoponímia clássica…).
Como leitora apaixonada de poesia, ando
sempre à procura do livro único e, qualquer leitor, atento aos sinais, não pode
deixar de interpretar nesse espectro de sentido/indício a epígrafe final,
inscrita na p. 77, de Christopher Reid: He pursued a vision of
wholeness by means of collage. Nem a da p. 11, retirada de movimento,
que autoriza a ler este conjunto de poemas como resposta(s) às inquietações do
próprio caminho. Todas as autobiografias poéticas se tecem dos textos
acumulados/ preservados na memória da arte/vida…
O que mudou no trajeto? Os pilares de
organização dos poemas passou das 7 partes para os 4 sustentáculos
clássicos: locus amoenus (conforto amoroso na paisagem ideal) | beatus
ille (afortunado desprendimento no campo horaciano) | tempus
fugit (fugacidade irreparável do tempo virgiliano ou a alimentação da
natureza maternal?) | carpe diem (aproveitamento horaciano do
dia presente). Cada quarto com 10 poemas, numa reconhecível simetria capaz de
acalmar inquietações desenhadas pelas luzes que bruxuleiam até uma ‘curva
do rio’ (p. 73) onde as luzes na água/rio voltam – melancólica, ironicamente?
– ao reencontro do sentir: “[…] uma agitação inquieta. Não / demores.
Vem depressa. / Não sossego / se não te falo.” O corpo desta casa ergue-se
com a magnitude da solidão do poema inaugural “Aqui” (p. 17), com o
reconhecimento dos lugares em nós desde R. M. Rilke com Heirsein
ist herrlisch e a língua, o esperanto, em que os humanos se podem
entender. Viria a propósito perceber o ‘piscar de olhos’ ao
tradutor, como fazedor dos possíveis e limitados esperantos sistematizados, mas
nada me autoriza a fazê-lo. A não ser a perfeição da forma e o polimento das
arestas: as 4 colunas são sustentadas por um poema em que o hic et
nunc e a comunicação sem barreiras é o tempo do momento, até ao final,
em que a intimidade e a presença/ausência (vice-versa?) de um tu garantem os
pedaços necessários à completude… Porém, “Há uma mão-cheia de coisas à
espera de / acontecer. […] / […] / […] A ordem / isso não sei.”(Coisas à
espera de vez, p. 31) e “O poema era o / texto (o amor o pretexto […]”
(Na chegada do Outono, p. 49).
O que o poeta sabe são as palavras de
outros – tantos (Soderberg, p. 15; Ritsos, p. 29; Heaney,
p. 33; Larkin, p. 34; Elytis, p. 47; Celan,
p. 61…) – que o atravessam e o distinguem dos que passam ao largo (“Ele fazia poemas.”,
p. 22), o que é mais do que ler ou ‘apenas viver a sua vida’, por isso
está sempre “de dentro do poema)” (p. 43), celebrando a leitura
enigmática da poesia e do tempo na mãe natureza, reconhecendo “o eco [que]
fala as / suas línguas.” (p. 56), trazendo ‘o que é feio’ (p. 63)
para o poema, disponível para o mundo, “Como / quem ergue a verdade com a luva
/ da linguagem.” (Aberto todos os dias, p. 71). Em fuga ao renascimento,
o holandês Vermeer (durante tantos dias esquecido e ignorado…)
veste esta quarentena de poemas com Vista de Delft, a ilusão urbana
entre as águas que correm e transportam as melancolias e ironias poéticas para
os cirúrgicos (e narcísicos?) mares de outras misteriosas criações: reflexos de
coração aberto à fragilidade de todos os dias…»
SÉRGIO ALMEIDA, Jornal de Notícias, 1.2.23
TEREMOS SEMPRE A PULSÃO DA VIDA
Novo livro de João Luís Barreto
Guimarães é uma celebração reflexiva do quotidiano
"Durante meses a fio, no período
inicial em que a covid-19 toou de assalto a vida de todos nós, João
Luís Barreto Guimarães foi incapaz de escrever um poema sequer.
Percebe-se o bloqueio: autor de uma poesia erigida sob o milagre contínuo da
existência, ainda que atravessado por constantes dúvidas e inquietações, o
recente Prémio Pessoa sentiu-se subitamente tolhido pela antítese da vida que a
pandemia trouxe. No lugar da liberdade houve o(s) confinamento(s); em vez da
esperança, apenas a contagem sibilina de vítimas, como se se tratasse de uma
soma contabilística.
Se a dita normalidade demorou quase dois
anos a voltar a instalar-se, Barreto Guimarães não precisou,
felizmente, de tanto tempo para voltar ao estado poético habitual.
O lento recomeço de uma sociedade avessa à
pausa é o fio condutor de "Aberto todos os dias", uma breve
mas fecunda jornada poética pela miríade de encantos do quotidiano, dos quais
estivemos privados à força durante demasiado tempo.
É, assim, neste vagaroso regresso à vida
que se detém o olhar do poeta, capaz de se deter em objectos ou paisagens
esquecíeis na sua aparência. Mas, como escreve no belíssimo "O incêndio",
"alguém tem de amar o banal." Mesmo que sejam "luas
que nascem dos dedos quando se roem as unhas" ou "o cheiro a
peixe frito que sobe desde a cozinha".
Afinal, depois do longo período de
privações, difícil mesmo é cansarmo-nos do "mundo aberto lá fora",
que se espraia com langor, indiferente aos nossos estados de alma. É na
magnificência dos detalhes que reside a magnificência de muitos destes poemas,
em que a apologia do comum não exclui - antes reforça - a convicção do
milagre de existir.
Para que "nem um só dia (seja) desperdiçado",
só necessitamos de "estar à disposição do mundo". Por toda a
parte "há uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer", do
"prazo quase a acabar" ao "vermelho do semáforo (que
reteve um par de vidas) a instantes de ceder a sua vez à cor verde."
A celebração reflexiva do quotidiano
operada neste conjunto de poemas não é linear ou sequer uniforme. Bastas vezes
a denúncia se acerca destes escritos, seja para dar forma à discriminação para
com os mais velhos - bem evidente no combate à pandemia - ou a invocar a
mediocridade, através da recorrente figura do execrável sr. Lopes."
JOSÉ MÁRIO SILVA, Expresso,
27.1.23
ABERTO TODOS OS DIAS
"Alguém tem de amar / o banal. Alguém tem
de tratar disso." Eis uma espécie de caderno de encargos - atenção
máxima às coisas mínimas, com fugidio lirismo - a que João Luís Barreto
Guimarães se entrega com júbilo, subtileza, ironia e sentido lúdico
(sem esquecer a habitual abundância de parêntesis, e a costumeira aparição do
Sr. Lopes) num livro frugal e feliz, o primeiro que publica depois de lhe ter
sido atribuído no final de 2022, o Prémio Pessoa."
LUÍS RICARDO DUARTE, Visão -
Magazine, 19.1.23
À disposição do mundo
«Não é preciso estar nomeada, direta ou
indiretamente, para a pandemia de Covid-19 atravessar o novo livro de poemas
de João Luís Barreto Guimarães. O contentamento que percorre estes
poemas será facilmente reconhecido pelo leitor como seu. É a alegria de estar
de regresso ao café onde se escreve um poema, de se abeirar da margem do rio,
de lhe ver as gaivotas e embarcações, de poder afirmar, sem constrangimentos,
os pequenos gestos do dia a dia. Mas Aberto Todos os Dias, que se publica na
sequência da atribuição do Prémio Pessoa ao poeta e médico, é
também a celebração da aurea mediocritas defendida por Horácio nas
suas odes. O louvor da vida simples (que, para muitos, a pandemia também veio
revalorizar). Nesse sentido, o livro divide-se nas quatro aspirações
do homem do Renascimento (locus amoenus, beatus ille, tempus
fugit, carpe diem), decantadas em poemas que buscam um ideal de
vida ou a integridade de cada momento. No seu reverso, também se assume a
certeza de que o tempo corre imparável, sem se repetir. Aberto Todos
os Dias convoca constantemente o leitor (leia-se o poema O
Leitor Acaba de Virar a Página) não para uma intimidade partilhada, mas para
o fazer parte da poesia, aquela que olha para as coisas banais e anónimas, na
certeza de que “escrever é/ fazer existir o que antes não existia”.»
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