POESIA REUNIDA


 430 poemas

(Porto, Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 1985-2022) 

1ª edição, Quetzal, Lisboa, Abril 2023

capa de Rui Cartaxo Rodrigues, a partir de A ruela, de Johannes Vermeer
direcção literária de Francisco José Viegas


Prémio Pessoa 2022

 

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MARCELO REBELO DE SOUSA, cerimónia de entrega do Premio Pessoa, Culturgest, 17.4.23

«Galardões como o Prémio Pessoa – e não há muitos, se é que há algum, como o Prémio Pessoa – podem servir para homenagear personalidades que se tornaram uma evidência, ou que nos aparecem, sobretudo se estivermos distraídos, como uma surpresa. Um pouco como na política se fala de “senadores” e de “promessas”, categorias que aliás nem sempre se medem por um critério estritamente etário. Se há jovens senadores nas artes, na cultura, na ciência, no pensamento, também há promessas que estão “a meio do caminho da sua vida”. O que chama imediatamente à atenção, não tanto em João Luís Barreto Guimarães, mas na escolha do Júri, é o facto de se tratar de um poeta, e de, sendo uma evidência para quem está no mundo da poesia, o não ser para quem está de fora. Claro que o prémio já tinha sido atribuído a António Ramos Rosa e a Manuel Alegre, para não falar de Herberto Hélder, que não aceitava prémios, mas toda a gente conhece Manuel Alegre, e quase toda a gente tem uma ideia, concreta ou difusa, de Ramos Rosa e Herberto, de poemas seus ou características suas.

Ora, desde 1989 que as pessoas que acompanham a poesia portuguesa de hoje conhecem João Luís Barreto Guimarães, e nos últimos anos a sua atividade literária alcançou outro patamar de visibilidade e reconhecimento, até internacional – os Estados Unidos da América que o digam –, mas podemos admitir que não se trata de um nome, como se diz, “evidente” ou mesmo que se tratou, para muitos, de uma “surpresa”. Aliás, a família quando eu perguntei à entrada como tinha reagido ao Prémio disse foi surpreendente. Como se fosse surpreendente para quem convive todos os dias com o premiado aquilo que é de uma justiça evidente e linear.

O conhecimento da sua poesia desfaz a surpresa. Porque há mais de três décadas que Barreto Guimarães é o melhor que se pode ser em literatura, ou seja, parecido sobretudo consigo mesmo. Houve quem lhe notasse afinidades geracionais, um certo tom, quotidiano ou lúdico, que também encontramos noutros possíveis vencedores deste e doutros prémios, como Jorge Sousa Braga ou Adília Lopes. Mas a sua singularidade, que, entretanto, se acentuou e diversificou, é congénita. Se vem da “poesia da experiência”, da sua experimentação formal, do registo dos dias e dos afetos, do jogo com as palavras, a obra do nosso premiado evoluiu, à medida que a idade avançava e o mundo mudava, para a elegia, a meditação europeia, as pequenas e grandes tragédias pessoais e comunitárias, o estoicismo, sem esquecer, claro, a vida da poesia. E, sempre, essa noção de espaço e de tempo, que nos faz inapelavelmente nómadas, e a vivermos eras que se sucedem, irresistivelmente, para que o que foi possa abrir caminho ao que vai ser.

Nas suas palavras “E aqui estamos (tu e eu) nómadas neste rio sagrado onde um primo nosso afastado (alguns 30 mil anos) deixou picotado em pedra num mágico altar de xisto este casal de cervídeos (se não em pose ousada para o que deve um santuário pelo menos dando a ideia de estarem ali naquilo já desde o Paleolítico). Homo sapiens apenas no belo Museu do Côa: duas ou três invenções são desde ontem notícia (isso de termos logrado o fogo domesticado usarmos linguagem falada criarmos belas artes com signos). Longa migração para norte desde o Quénia até aqui - podia falar um pouco desse lento despertar …”. Noutras palavras suas também “Na manhã do temporal saímos a medir estragos (repor pedras nos muros colher gravetos do chão). A fúria da natureza volveu a ordem anterior como marca de um excesso quando no dia seguinte olhas melhor e percebes o equívoco da noite anterior. Da força da tempestade só sobrou dor e silêncio (aos pés de um pinheiro-manso, céu e terra derrotados: um rato e um pardal são a memória visível da cega devastação) como se um recomeço apenas fosse possível caso entre etéreo e terreno ambos ousassem perder. Um Deus ajusta o equilíbrio destruindo o que criou - alguém tem de morrer cedo para que outrem possa sobreviver”.

Na recentemente editada “Poesia Reunida” encontramos, para citar dois títulos de livros, os nossos “Lugares Comuns”, quer dizer, os lugares que nos são comuns a todos (lugares sítios e lugares de acontecimentos), e um “Você Está Aqui” que funciona como indicação topográfica, viajante e como certificação existencial daquilo a que os filósofos chamam o estar no mundo”. Longe de ser um poeta monotemático, ou monocromático, João Luís Barreto Guimarães é autor de uma obra poética que abrange nas palavras de outro grande contemporâneo, Eucanaã Ferraz, “anotações do vivido (…) nas quais ressoa tanto a intimidade do diário quanto a arqueologia e a história das civilizações”. Veja-se como, no último livro de originais “Aberto Todos os Dias” é o mundo que está aberto todos os dias, e os poetas abertos ao mundo, sendo aqui “poeta” um sinónimo um pouco mais intenso da palavra “humano”, ou da palavra “pessoa”.

Se o volume da obra poética é por natureza uma soma e uma súmula, em “Aberto Todos os Dias” temos um instantâneo da poesia de João Luís Barreto de Guimarães em 2023, ano em que o Júri justamente o distinguiu. A estrutura do livro com os preceitos renascentistas de “locus amoenus” temperança, consciência da fugacidade e “carpe diem” representam, não direi o chamado “estilo tardio”, porque se trata de um poeta ainda jovem, mas uma poesia da maturidade pessoal e poética, talvez hoje mais sofrida do que antes, mais vasta nas suas preocupações, mas sempre atenta ao poema como artefacto, ao poema não hermético, porque matéria humana que não se interessa a todos, uma vez que todos dela fazemos parte. Nessa medida, o Prémio Pessoa 2023 não foi atribuído apenas à obra poética de João Luís Barreto Guimarães, mas também, se é que há diferença, ao poeta Barreto Guimarães. Um homem cuja consciência poética se exprime nos seus livros, naturalmente, mas também na tradução e divulgação de poesia contemporânea, convicto que está de que a poesia nos dá indicações decisivas sobre a nossa condição atual e intemporal, ou na recuperação de uma ideia de médico (que ele também é) que se manifestou, mas já hoje aqui falada, na muito noticiada cadeira de introdução à poesia dirigida à estudantes de Medicina. Uma ideia do médico enquanto humanista, cultor das Humanidades e seguidor do mote clássico de Terêncio, que disse aquilo que os médicos e os poetas bem sabem: “nada do que é humano me é estranho”.»



PAULO MACEDO, cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, Culturgest, 17.4.2023

«“Estes lamentos / Dos violões lentos / Do outono / Enchem minha alma / De uma onda calma / De sono”. A poesia serve, a propósito e a despropósito, para tudo um pouco. Mas as estrofes que citei, a abrir, de Paul Verlaine, tiveram uma função libertadora muito particular. Foram essas palavras que serviram de senha ao Dia D, em 6 de junho de 1944. A tradução que usei é, por sinal, de Manuel Bandeira, um grande poeta brasileiro. Palavras, libertação e poesia. Um encontro perfeito.

Em trinta e seis edições de Prémio Pessoa é a quarta vez que um poeta é distinguido. Um poeta que é médico. Confesso que sempre me fascinou a capacidade dos médicos em se adaptarem a tantos e tão diversos terrenos. Temos, ou tivemos, médicos-arqueólogos, médicos-historiadores da arte, médicos-tenores, médicos-músicos, médicos-pintores, médicos-apresentadores de televisão etc. Médicos-políticos, seguramente. Essa visão tão próxima da vida humana, das suas fragilidades, da sua intimidade, dá-lhes seguramente alguma vantagem na leitura do mundo em volta. Ser médico com uma especialidade em cirurgia plástica, reconstrutiva e estética parece-me desafiador. É provável que o Dr. João Luís Barreto Guimarães discorde do que digo, mas vejo na sua especialidade um toque poético, pela capacidade transformadora que cada gesto comporta.

Não esqueçamos o início lapidar de um conhecido soneto de Florbela Espanca: “Ser poeta é ser mais alto…” Recordando o que nos diz António Feijó estamos ante o “difícil problema de saber o que explica que um autor tenha sido acolhido no conjunto de autores” da sua área. Ou seja, como é que é feita essa cooptação. Talvez porque traga algo de novo e de diferente. Aquilo que António Feijó refere como “uma capacidade de articulação expressiva inédita, um aumento de possibilidades expressivas”. Talvez porque, como escreveu Clara Ferreira Alves, quem escreve tenha trazido algo de novo e de diferente. Cito, desta autora, “é preciso prestar atenção a todas as coisas que acontecem pela primeira vez. Não só as que acontecem pela primeira vez nas nossas vidas. A todas as coisas, as que acontecem fora das nossas vidas e dentro de outras vidas”.

João Luís Barreto Guimarães está dentro dessa diferença e dessa originalidade. O homem, o poeta, a quem hoje entregamos este Prémio tem uma carreira longa nas letras. Mas desculpem-me desviar um pouco dos prémios e das distinções e das comendas. Uma das coisas que me chamou mesmo a atenção no percurso do Prémio Pessoa deste ano é o facto de lecionar “Introdução à Poesia”. Na Faculdade de Letras? Não. No Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. A cadeira tem o título de “Introdução à Poesia”. Depois, entre parêntesis, para estudantes de Medicina. Nos objetivos da cadeira lemos coisas como: Como ler um poema: ideias e técnicas para entender a forma e o género poético. Ou ainda: Como funciona um poema: técnica poética e ofício da escrita. Mas também: Leitura: como analisar um poema em profundidade e expressar ideias de forma eficaz. Não sei se outras faculdades seguem este caminho. Mas eu diria que a Poesia nos é necessária. E que uma visão poética da realidade nos dá outra perspetiva do quotidiano e do mundo à nossa volta. O próprio João Luís Barreto Guimarães o sublinha. Não é por acaso que o título da sua entrevista ao “Expresso”, depois do anúncio do Prémio Pessoa, tenha sido “O poeta contemporâneo não pode ser autista da sua própria sociedade”. O programa da cadeira que leciona é fascinante e inclui uma diversidade que vai dos símbolos, dos mitos e dos arquétipos ao rap e ao blues. A palavra e o som estão sempre presentes. Como afirma o próprio, “ [a sua reflexão] quer expressar o mundo global. A multitude de vozes e línguas que constituem a poesia europeia e a poesia anglo-saxónica nos dias de hoje”.

Há cerca de 7.000 línguas no mundo e jamais dominaremos toda a espantosa diversidade de todos esses sons. Mas é decisivo que se queira ter, como o nosso premiado tem, uma visão que saia das fronteiras da Lusitânia e que se queira afirmar como europeia. Ou seja, estamos ante alguém que se considera um poeta europeu e não meramente um poeta nacional. Respondendo por uma tradição que não é só a portuguesa, embora não a renegue. Não vou enumerar toda a vasta lista de publicações, de prémios, de traduções, de reconhecimentos de vária ordem que João Luís Barreto Guimarães tem tido. Tiro partido de uma expressão sua, numa entrevista a um jornal, quando disse “o que mais me interessa é falar do presente volátil, do agora”. É uma história que nasce de uma lição que julgo ter aprendido com João Miguel Fernandes Jorge: a que mistura a mitologia individual com a mitologia coletiva”.

O Mediterrâneo está na linha do horizonte de muitos dos seus textos. Mesmo procurando inserir a sua obra no contexto da poesia europeia contemporânea e anglo-saxónica, muitas das paisagens estão a sul. Tem um poema, com o título irónico de “Pode ser Pepsi?”, onde, à declaração de “gosto dos frescos de Pompeia em dias de mais calor” junta a declaração, de sentido político, “Não gosto do Mediterrâneo transformado em cemitério”, para depois tornar à ironia dizendo “Distingo liquidez dos bancos da liquidez de teus olhos”. Ao Mediterrâneo torna em “Sicília”. Domina o meio ambiente, os damascos, os figos, as oliveiras, os limões, os ciprestes. Podemos fazer do sul o nosso norte. Mas regressamos sempre ao ponto de origem. O Porto e Venade (perto de Caminha, no Alto Minho) são esse regresso às origens. Pode ser erro do leitor que sou, mas foi nessas paisagens que pensei quando li “Sol de Janeiro”: “Nunca tanto como hoje reparei com atenção na luz do sol de Janeiro. Forte mas delicada. Furtiva mas demorada. Não arde nem faz tremer. Não é densa nem clara”. É um regresso ao Portugal Atlântico das origens, mais longe dos ambientes meridionais. Tudo é relativo, claro. Há anos num documentario sobre a Europa do Sul, a cidade que se mostrava era o Porto.

Só posso desejar que aquilo que quer se concretize. Como disse na já citada entrevista ao “Expresso”: “Estou desejoso de que tudo isto passe e que eu volte aos caderninhos, às canetas, à minha mesa de café, volte à matéria-prima, e continue a desafiar-me a mim próprio para criar objetos originais”. Que assim seja, claro. Como é bem sabido, este Prémio não é só de consagração. Ou melhor, consagrando e reconhecendo uma carreira, é também um prémio de estímulo para que os galardoados vão ainda mais além. Espero que já tenha regressado aos cadernos e às canetas e à matéria-prima. Vivemos hoje ofuscados pelas novas tecnologias. As novas tecnologias têm muita coisa, mas ainda não têm Alma. É por isso também que posso garantir que este discurso – que é um discurso de agradecimento, antes de mais – foi escrito sem o recurso à inteligência artificial e ao Chat GPT. Muitos parabéns, Dr. João Luís Barreto Guimarães.»



FRANCISCO PINTO BALSEMÃO, cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, Culturgest, 17.4.2023

«(...) Penso sinceramente que, mais uma vez, o Júri do Prémio Pessoa, ao qual tenho a honra de presidir, cumpriu a sua missão: “distinguir anualmente, a pessoa de nacionalidade portuguesa que, durante esse período e na sequência de uma atividade anterior,  tiver sido protagonista de uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do país.” O 36º Prémio Pessoa vai ser formalmente entregue por Sua Excelência o Presidente da República, neste magnifico anfiteatro da Culturgest, a João Luis Barreto  Guimarães.

O nosso premiado tem conseguido percorrer, ao longo dos seus 55 anos de vida, dois percursos bem diferentes: é médico, especialista de cirurgia plástica e reconstrutiva, e é poeta. Os dois percursos terão começado praticamente ao mesmo tempo, pois o primeiro livro de poesia é publicado em 1989, tinha então o autor 22 anos. O Pessoa 2022 – e é o quarto poeta a ser distinguido – é-lhe atribuído, entre outras razões, pela sua obra vasta que se inscreve simultaneamente na tradição lírica portuguesa, tanto na sua nota histórica como intimista, e numa modernidade europeia e anglo-saxónica. Barreto Guimarães tem dezenas de livros publicados em Portugal e traduzidos no estrangeiro, na Europa e na Ásia, na América do Sul e na América do Norte. Nos Estados Unidos foi, aliás, galardoado com o Willow Run Poetry Book Award, em Filadélfia.

Mas, acima de tudo, o nosso laureado escreve sobre nós, portugueses, e escreve sobre tudo o que vê e o que observa, o que sente e o que pensa, e escreve sobre o outro com uma atenção permanente. Permitam-me que vos leia este pequeno poema que escolhi – e a escolha não foi fácil – entre muitos outros: Ele fazia poemas. Os outros / passavam ao largo / (fugindo a qualquer pergunta) / ele nem sequer escondia o que ali estava / a fazer. Ali / à frente / de todos. Linhas e linhas / escritas. Não se limitava a ler. / Não se limitava apenas a viver / A sua vida. / Sei muito bem o que digo. Aquilo eram / poemas.

É uma poesia pura, simples, mas também uma poesia que alia a sensibilidade à inteligência. E, já que falamos de inteligência, termino revelando-vos que fui consultar como está Barreto Guimarães cotado no mundo da Inteligência Artificial, onde cada vez mais nos condenamos (ou estamos condenados?) a viver. (...)»



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