44 poemas
(Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 2012-2015)
1ª edição, Quetzal, Lisboa,
2016, esg.
capa e desenho de Rui Cartaxo Rodrigues
direcção literária de Francisco José Viegas
2ª edição, Quetzal, Lisboa, 2019
3ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa, 2023
Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa 2017
Willow Run Poetry Book Award 2020 (EUA)
Tanssiva Tahru Poetry Prize 2023 (Finlândia)
§
ANTÓNIO LOBO ANTUNES, Expresso, 6.1.18
«É um poeta do excelente.»
PRÉMIO NACIONAL DE POESIA ANTÓNIO RAMOS ROSA, Faro, 26.7.17
(Acta do júri José Tolentino
Mendonça, Nuno Júdice, Adriana Freire Nogueira)
« (...) pela sua coerência temática,
ligada ao tema da viagem, pela originalidade de um universo que não se limita à
descrição, mas capta, em cada apontamento, o pormenor essencial em que a
História e a cultura europeias se projectam. Este é um livro onde o Sul aparece
representado em tudo o que o Mediterrâneo significa na nossa cultura, no qual a
antiguidade greco-latina é transportada para o presente, cruzada com a
matriz judaico-cristã, um livro que nos apresenta uma poesia que
reflecte as nossas raízes culturais como elementos vivos do nosso
quotidiano. Porque o Mediterrâneo, berço da cultura ocidental, é uma fronteira
(íntima, não só geográfica) onde a poesia europeia sempre habitou e cuja
revisitação a expande.
Este livro marcante de João Luís Barreto Guimarães celebra o encontro da sua poética com este mundo de memórias, de correspondências e de vozes, e vem na sequência de uma obra que se tem vindo a impor, ao longo dos anos, em lugar de destaque na nossa poesia contemporânea (...).»
CARLOS VAZ MARQUES, O Livro do Dia, TSF, 8.4.16
MEDITERRÂNEO
JOSÉ MÁRIO SILVA, Expresso, 19.3.16
ONDE A OLIVEIRA SE DETÉM
«No livro anterior de João Luís
Barreto Guimarães, “Você Está Aqui” (o primeiro a
surgir depois da “Poesia Reunida”, publicada em 2011), a estrutura
assentava numa dupla epígrafe de Miroslav Holub. Agora
estabelece-se igualmente um percurso entre duas epígrafes, desta vez de Predrag
Matvejevitch, autor do “Breviário Mediterrânico”. Diz a
primeira: “Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo.” E
a segunda: “Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do
Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém.”
As duas frases parecem contraditórias, mas não são. Porque o Mediterrâneo de
que fala Matvejevitch, e que é a matéria deste livro, vai muito
além da geografia. É um estado civilizacional e uma arte de viver, sem
fronteiras definidas. É uma paisagem afectiva, um modo de inscrição no mundo. A
cada pessoa, o seu Mediterrâneo. E JLBG mostra-nos o dele,
depois de muitas viagens, derivas e observações, transfiguradas por uma arte
poética de elegância elíptica.
O principal instrumento do poeta é a
atenção extrema ao que o rodeia. Pode ser a múmia de um gato num museu de
antiguidades egípcias em Turim, a “cúpula celeste” em Rodes, ou
o “silêncio dentro do silêncio”. Mas também podem ser coisas mais
subtis, em que pouca gente repara: nomes de amantes escritos nas folhas de um
cacto; a “dança” de um barco à vela nas vagas de Míconos; o
rasto deixado por um gesto; a pose de um imperador romano que desenhou os
confins do império mas soçobra no anverso de um denário, “afagado pela
merca”. Coisas inefáveis como a última luz na praia (“se eu não guardar
num poema esta hora atravessada / nem ela nem esta tarde alguma / vez
existirão”) ou a epifania de que é preciso estar à espera, “esse
instante indivisível (insondável / fotográfico) que / dissolve carne e tempo
numa / alegria química”.
Sobre este canto de amor à cultura
mediterrânica não paira o espectro da solenidade, e menos ainda quaisquer
sombras de grandiloquência, porque o poeta nunca se põe em bicos de pés nem
alardeia erudição. Muito ao seu jeito, desmonta essa ameaça com o recurso ao
humor, à ironia, e a um espírito lúdico, um gosto pela brincadeira e pela
experimentação. Quando se fala da presença paleolítica no vale do Côa, por
exemplo, o discurso interrompe-se porque o poeta está a beber vinho ao mesmo
tempo – um Douro (“Reserva 2009 14% vol.”) – e o torpor etílico intromete-se. Há um poema
sobre uma viagem de TGV, entre Málaga e Córdoba, apresentado como um problema
de Física. Outro, sobre Malta, está alinhado à direita em vez de à esquerda,
porque por lá se conduz à esquerda em vez de à direita (questão de simetria).
Tão depressa se fala de estátuas “a que faltam bocados”, ou de
uma “ruína em ruínas”, como de objectos banais e quotidianos: as
perucas das senhoras em quimioterapia, com direito a ida ao cabeleireiro
para “se sentirem refeitas”; ou a chávena por onde passa tanto café
durante um dia que “logo mais (tenho a certeza) não / vai conseguir
adormecer”.
O Mediterrâneo de JLBG é um território mental, que vai de Jerusalém a Marraquexe, do deslumbramento dos “turistas pagãos” diante da “beleza agnóstica da pedra” à consciência de que as coisas essenciais, de alguma maneira, permanecem sempre: “Este é o mar de Ulisses (o / que Xerxes vergastou) um mar que / não é passado / (porque o passado é presente) onde o / tempo passa lento porque avança parado”.»
BERNARDO PINTO DE ALMEIDA, Revista Colóquio
Letras, n.º 193, Setembro 2016
O POEMA DAS PEQUENAS FORMAS
«Aludir ao Mediterrâneo — como
desassombradamente o fazem tanto o título quanto muitos dos belos poemas que se
juntam no último livro de João Luís Barreto Guimarães — é,
muito mais, e também muito menos, do que simplesmente referir um conceito e um
espaço, seja este geográfico, estratégico, cultural ou económico.
Muito mais porque, no fundo, este termo
recobre todo um significado histórico e civilizacional antiquíssimos, e muito
ricos de significações e de memórias, a que os demais se ajustam, e que se
desenrolaram em torno desse mar que banha, ao mesmo tempo, o sul da velha
Europa e o norte de África. Um mar que une e desune, fere, opõe ou concilia
vários modelos de vida e pensamento, diversas religiões e formas de agir e, bem
assim, economias e modelos de organização humana e social que se desenvolveram
por mais de três milhares de anos.
Pois o Mediterrâneo — talvez o único dos
grandes mares cuja dimensão não chegou para ser chamado oceano, e cada um
tratou como um lago, mas todavia foi fonte e elemento fundador de civilizações
— tanto foi o mar de Aquiles, Hércules, Vénus ou Neptuno,
como o de Augusto e Adriano; dos Filipes como dos
Persas, do desembarque Aliado contra o império do mal Nazi, como dos trágicos
migrantes que diariamente ali se sujeitam ao naufrágio inglório, para fugir a
destinos ainda mais cruéis, que a loucura humana lhes traçou, contra toda a
decência e contra toda a bondade. Que tanto serviu a mitologia grega e romana,
como banhou cenas bíblicas, encenando muito do seu lastro histórico.
Muito menos, porque hoje ele serve
também, na confusão babélica do mundo global, de argumento histérico à promoção
turística de sentido cultural menor; ao nome de uma dieta que ninguém realmente
identifica ou, pior ainda, de pretexto vão para umas quantas canções
românticas, a bordo de frágeis barcos do amor que o tempo imediatamente afundará
no mais turvo esquecimento.
E de tudo isso este livro (se) dá
subtilmente conta, mas sem jamais pretender à erudição, que nos permite nas
entrelinhas avistar, mas que não o tolhe, sem querer descrever lições de
história, mas profundamente as acolhendo, até como parte do seu corpo mais
íntimo e secreto, e seu lastro de memória densa.
Breviário do Mediterrâneo chamara Predrag
Matvejevitch a um belo, complexo livro, que alude
a toda esta riqueza — de que tão pouco o nosso poeta desdenha, e que jamais
esquece — o que não surpreende vindo de um bósnio e que, não por acaso, aqui aparece chamado em
epígrafe, e depois de novo no final, já a encerrar o livro, para
lembrar que os sábios antigos ensinavam “que os confins do
Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém”. Abrindo, pois, os limites
geográficos dessa região mítica, à contingência leve, fortuita diria Lautréamont,
da presença incerta de uma árvore milenar que, também por isso, pode encontrar
terreno fértil em quase todo o lado, já que vem desde a orla do deserto e
depois se estende para longe, até às portas dos mares do norte, muito afastada
já de toda essa paisagem que uma luz doirada parece separar do restante mundo.
Qual nome mágico, Mediterrâneo opera
pois, aqui, como metáfora alargada, expandida, da própria poesia, ou do espaço
de criação poética e poemática. Já que, também esse, é um espaço de confins
difusos, abrindo-se, e como já o mostrou Pound, tanto à grande
tradição das vozes do passado — dos cantos de Orpheu às litanias berberes,
da Odisseia de Homero ao cante jondo
que Lorca melhor que ninguém celebrou — quanto às formas mais
inovadoras que ainda hoje procuram aprofundar esse acto transformativo
que Julia Kristeva designou, em tempo já distante, como
da “revolução da linguagem poética”, e que inscreve todavia as
funções simbólicas que se esperam do poema desde a modernidade.
Trata-se pois de definir o que é
propriamente da ordem da invenção de um espaço geopoético — e lembremos, muito
de passagem, a insistência de Gilles Deleuze em fazer corresponder
o espaço literário mais à geografia do que à história — e que se constitui como
esse, apenas adivinhado, ou sugerido, que se estende no tempo (histórico,
cultural, civilizacional), mas também no espaço e comporta muitas e
variadas tradições, crenças, falas e vozes actuais e arcaicas.
É assim que se pode ler, num poema como
o que ficou chamado “Ainda ontem no Pocinho”, uma alusão, inesperada
mas coerente, a essa vasta geografia que, para o Poeta, parece chegar a
estender o ‘seu’ Mediterrâneo até ao nordeste
interior, mais celta. E onde, numa toada que evoca a de uma velha canção
de Brian Eno, escreve: “E/aqui estamos (tu e eu)
nómadas/neste rio sagrado onde um primo nosso afastado/(alguns 30/mil anos)
deixou picotado em pedra/num mágico altar de xisto este/casal/de cervídeos (se
não em/pose ousada para o que deve um santuário/pelo menos dando a ideia de
estarem ali naquilo/já desde o/Paleolítico)”. Uma dupla alusão ao tempo — o
de chronos e o de kairós (aqui figurados como
o de ontem e o de há trinta mil anos) — e às suas teias múltiplas, no interior
das quais se assiste ao que descreve uma banal troca erótica, em feliz sucessão
de imagens que associam as duas instâncias, temporal e física, numa lógica do
efémero (e no entanto eterno) abraço amoroso, seja este humano ou animal. Mas
que, por produzirem esse sentido de movimento, espacio-temporal, abrem para uma
espécie de forma cinemática, que a poesia vem requerendo desde o início do
século passado com crescente urgência.
Funda-se então nisso outro sentido do
tempo, visto do lado da continuidade, e mesmo da ancestralidade, do mundo como
das espécies, que nos é mais verdadeiro e profundo, em si mesmo, do que todo o
entendimento racional. E como se, poeticamente ao menos — e mesmo se este é,
como muitos do autor, um poema filosófico — o sentido do
mundo fosse muito mais esse, afinal, do que qualquer outro. Nega-se também
assim, nele, qualquer metafísica do amor, já que tudo nos aparece reduzido,
agora, ao simples jogo antiquíssimo de um tu e de um eu,
que espelha o dos dois pobres cervídeos gravados na pedra por um primo,
antepassado, remoto. Uma imagem que descreve o mundo numa acepção de modéstia
de uma escala humaníssima, em que se rejeita de vez todo o ímpeto declamatório
de grandeza, ligado à forma clássica, e mesmo à modernista. Para que, através
desse sentido deceptivo, capaz de aceitar a banalidade do mundo, se possa
chegar a encontrar espaço para o que é próprio do contemporâneo, essa medida
rasa do mundo que vamos aprendendo e aqui se professa.
Mas estas “navegações” —
e o termo, que evoca uma longa tradição da poesia portuguesa, e mesmo europeia,
que vai de Camões a Pessoa, de Sophia a Sena,
ou também de Eliot a Kavafis, é também um dos
sentidos mais fortes que toma aqui essa alusão ao mar — podem ver-se como a
forma de procura de um limite geográfico que se pode deslocar até ao lugar em
que vamos visitar, pela mão do experimentado viajante, feito Ulisses,
uma improvável múmia egípcia. E que repousa, entre outras, ao menos desde Schiaparelli,
nos acervos riquíssimos do belo Museu das Antiguidades de Torino. Que nos
mostra como, “Envolta em metros de linho numa urna/de madeira/(dentro
de um sarcófago de pedra dentro/de uma tumba cerrada) uma/múmia/não torna fácil
o regresso ao corpo/da alma.”. Trata-se, na verdade, de uma subtil meditação
sobre a vida e a morte, disfarçada embora na simplicidade daquilo que o título
designa como A vida quotidiana da alma. Um poema em que, com a
ironia e distância próprias desta poética, Barreto Guimarães mostra
como, mesmo sem se atar na teia ecfrástica, o poema se pode reconstruir como
forma cinematográfica, que dialoga com essa outra fonte — bastaria recordar, em
socorro desta ideia, a comovente Viagem a Itália de Rossellini,
e a cena passada no Museu Arqueológico de Nápoles, para o evidenciar — já que
toda a imagem poética actual exige tal correspondência.
Mas quando, em “O esquema das coisas”,
o Poeta diz: “navegamos o dia inteiro pelo estreito/de Messina (longe
de guerras antigas onde/as pedras voavam)” ou quando adiante refere,
numa breve canção mediterrânica, que “Já/tudo vimos, tudo provámos,
tudo escutámos/(odes à vitória por Píndaro/vinho e azeite extraordinários)
nas/encostas onde Zéfiro traz às velas desde oeste/um cheiro húmido e/gelado.
(…) Agora é a vez de deixar/que seja o mar a tocar-nos (o/mar interior
primitivo/o caldo primacial)/ontem rasgado por remos da Fenícia até/Cartago…”,
é de facto ao desfazer da matriz clássica, e mesmo modernista, para sempre
perdidas, que ele alude. Todos os seus poemas nos falam afinal dessa dimensão
ruinosa, em que se demonstra como o tempo actual, e mais em geral o
contemporâneo, quando abriu os olhos, foi para contemplar um mundo em que toda
a forma fora já devastada para sempre pelos ventos da ruína.
Esta “meditação sobre
ruínas” — para retomar um belo e recente título de Nuno Júdice,
poeta que antecede de uma geração a de Barreto Guimarães mas
que inevitavelmente a marcou — faz-se em torno do mais arruinado dos mares, mas
também daquele que melhor sintetiza uma imagem da grandeza passada da Europa e
das suas vicissitudes, desde a ascensão e queda dos seus impérios até à forma
desfeita dos seus sonhos e quimeras. E como poética, então, não só contém como
sobretudo exprime, no seu forro mais recôndito, uma dimensão de funda meditação
política e mesmo antropológica.
Política, desde logo, porque nela se
esboça o sentido e a procura de uma nova forma de relação entre os homens neste
mundo (que o homem ainda pode habitar como poeta, mesmo que sem grandeza, e
para evocar Holderlin), isto é neste mundo que herdámos, e que dia
após dia enfrentamos. E antropológica, porque essas novas formas de relação e
de hábito são, justamente, aquelas que servem para acolher a identidade,
doravante sempre provisória e sem grandeza, desta qualqueridade que é própria
do homem contemporâneo e a que nos vamos rapidamente habituando. Do refugiado
ao migrante, daquele que chega dos subúrbios à senhora num coma hospitalar que,
ainda assim, um qualquer sistema de saúde há-de socorrer se não restar qualquer
outra forma, mais alta, de humanismo. Um mundo, portanto, de que desapareceu de
vez o traço do heroicismo humanista que a matriz clássica e modernista ainda
autenticavam.
Nos sucessivos poemas, o Poeta alude a
um tempo que foi, e que desapareceu para sempre. E, quando se centra sob o seu
próprio tempo, ainda presente, fá-lo sempre a partir da consciência da sua
edificação sobre um tempo anterior que já não é, que está reduzido a ruínas.
Essa consciência ou sentimento montaleano do tempo, porém, é
matricial a toda a sua poética em que, como se sobre um tabuleiro de espectros
vemos surgir, a par, figuras que emergiram de sucessivos incêndios, formas que
ruíram e de que já só restam sombras, ou fantasmagóricas aparições. Essa é,
porventura, a dimensão maior desta poesia que, sem pretender fugir à memória da
sua própria tradição, brande corajosamente uma capacidade notável para lidar
com as formas desse mundo em ruínas.
Como quando, no poema chamado “Êxtase de Santa
Teresa”, em alusão despudorada à escultura do Bernini que
se guarda em Santa Maria della Vittoria, em Roma, se permite, em desabafo quase
demasiado humano — diria Nietzsche — invejar “o tempo
que ela já leva naquilo” numa meditação desdenhosa. Ou como também, no
breve poema “Judeus errantes”, se apercebe de haver uma
continuidade, que é ao mesmo tempo paradoxalmente trágica e histórica, no
destino daqueles, e que os transporta afinal semelhantes em destino desde o
antigo Egipto, conduzidos por Moisés através do Mar Vermelho,
até à viagem para Auschwitz, agora sob o jugo do holocausto e da barbárie
moderna.
Na sua economia irónica, estes poemas
assinalam pois a emergência de uma forma típica da contemporaneidade, que é a
nossa verdadeira condição, numa visão do mundo que se apreende erguido sobre as
ruínas. Em que se acolhem tão serenamente quanto é possível as diferenças e as
descontinuidades que a história foi gerando, e de que Auschwitz justamente se
constituiu como a mais poderosa e cruel metáfora. Sem o julgar demasiado, nem
lhe procurar perdão.
E uma vez que esse acontecimento trágico
parece justamente ter destruído — graças à violência da sua funda inumanidade —
o que era a bondosa e doce herança mediterrânica do humanismo europeu,
civilizada até nos hábitos do mais humilde povo, e diluída nos seus ancestrais
costumes, e que estes poemas ainda procuram salvar numa arqueologia afectuosa,
para dar antes lugar à crispação contemporânea, baseada no medo e na urgência.
Aquela que para tudo encontra equivalência na linguagem exausta, prosaica, neurótica, da finança, do poder e da usura. Um mundo no qual se desvaneceu todo o prestígio da lírica e da épica antigas, para dar lugar a outros, porventura mais ruidosos, menos exemplares, diante dos quais apenas podem emergir as pequenas formas. E os poemas de pequenas formas que as dizem e repercutem. Mas, também, um mundo onde a poesia ainda se pode reinventar sob o sal, ou sob as areias, mesmo no meio do deserto.»
SOUSA DIAS, texto de apresentação de "Mediterrâneo", Porto,
15.04.16
CHAMAM-LHE EPIFANIA MAS É MUITO MAIS DO
QUE ISSO
«Mediterrâneo é o nono livro de
poesia de João Luís Barreto Guimarães, depois dos sete primeiros
reeditados em Poesia Reunida (2011) e do recente Você
Está Aqui (2013). E diga-se de imediato. Não se trata apenas de mais um
livro – o que mesmo assim não seria pouco – de um dos poetas maiores da actual
literatura portuguesa. Trata-se da melhor obra do autor, culminância da sua
forma sempre mais depurada ou abreviada de expressão poética e sistemática
afirmação de uma tendência já legível no livro anterior mas que aqui
transparece, e não por acaso, logo no título. Da tendência desta poesia de
instantes, de súbitos momentos de revelação do inefável no mais irrelevante do
vivido, a extrair agora esses instantes de «alegria química» (poema «Linhas
sobre a duração») não tanto da melancólica rotina dos dias, ou de «uma
réstia de tarde por resolver» (poema «História de uma tarde»),
mas de impressões soltas de viagens, de vivências espalhadas por múltiplos
lugares de passagem, de toda uma geografia, sobretudo europeia, agora interior
a esta poesia.
Desde o sexto livro, Rés-do-chão (2003)
que JLBG parece ter encontrado a sua forma, o seu estilo, o
seu tom original: poemas breves em que a centelha poética se acende, por magia
das palavras, de uma discursividade dir-se-ia não poética, rente à prosa,
centelha essa que transforma uma linguagem noutra linguagem, uma realidade
(prosaica) noutra realidade (poética). Cada um desses breves poemas
propõe-se como uma espécie de captura, nas palavras, da contraface inefável de
vulgares situações quotidianas, como fixação, num dizer, do indizível de um
instante «insondável / fotográfico», de um instante poético
intuído «à revelia do dia», como se diz num poema atrás citado
deste novo livro («Linhas sobre a duração»). O que se explicita com toda
a clareza num verso do outro poema já citado: «procuro o inefável na
espessura da tarde» («História de uma tarde»). Retenhamos
entretanto o adjectivo «fotográfico». Porque tal é a característica
mais manifesta, mais evidente, desta poesia: flashes poéticos
homeofotográficos, poemas escritos por analogia com os instantâneos da
fotografia, e que são o traço literário singular, a assinatura única, de JLBG.
O que significa que esta poesia, avessa a formalismos poéticos
auto-suficientes, a exuberâncias pirotécnicas da linguagem e à confusão da
alquimia poética da língua com essa pirotecnia, exibe uma pulsão realista, uma
vocação congénita para o real e, mais ainda, para o real mais comum, mais
prosaico, para o raso real quotidiano. É, repita-se, uma poesia de instantes,
da brusca transcendência poética intuitiva, só visível ou sensível para o
poeta, de uma realidade concreta ou de uma circunstância vivida banais, da
parte inexplicável ou de «mistério» (cf. poema «O
telhado do mundo») de tudo, até das coisas mais simples, da sua parte
sensível mas ininteligível. Uma poesia, em suma, como fotografia por palavras
de um excesso a si mesmo do real, como restituição pela linguagem de um
suplemento enigmático do real irrestituível, infotografável, pela
fotografia propriamente dita. Essa característica «fotográfica» insiste,
poema a poema, e até por vezes auto-enunciada, auto-reflectida, nos poemas
deste livro.
Até aqui o lado de continuidade do livro
com a obra precedente do autor. Mas, por outro lado, em Mediterrâneo os
poemas, sempre breves, sempre cristalizações de instantes na câmara escura,
necessariamente inobjectiva (intransparência do sentido), da poesia,
apresentam-se como photomatons poéticos de um poeta «turista», de
um poeta viajante, viajando por locais históricos mediterrânicos numa viagem
que o é tanto no espaço como no tempo. Os locais aqui nomeados, ruínas,
templos, igrejas, museus, peças de arte, etc., não remetem para óbvias
referências turísticas circum-mediterrâneas sem remeterem também para folhas ou
estratos do tempo. Não de um tempo qualquer, mas do tempo geneticamente e
heterogeneamente folhado, estratificado, da nossa espiritualidade europeia, do
espírito colectivo europeu. De facto o mar mediterrâneo invocado no título, e
horizonte do itinerário poético do livro, não é tão-só o mar geográfico mas o
espaço civilizacional euro-asiático e norte-africano envolvente do qual
decorre, como determinidade espiritual, aquilo a que chamamos Europa. A Europa
não como mera geografia, ou como comunidade económica e monetária, mas,
precisamente, como espírito, como a «linfa comum» dos rios
europeus, na feliz expressão do poema «As ruas estão acesas». Mediterrâneo organiza-se
aliás de uma forma menos geográfica do que geológica, estratigráfica. Há o
estrato mediterrânico pagão, mas também hebraico e islâmico, da antiguidade
clássica (partes I e II), o estrato cristão da Europa medieval e científico da
Europa moderna (parte III), o estrato contemporâneo do extravio da Europa do
seu espírito, extravio simbolizado nos campos de concentração da Alemanha nazi
(poema «Judeus errantes») e, em termos actuais, pelo Deutsche
Bank (poema «As ruas estão acesas») e pela transformação do
Mediterrâneo num cemitério de refugiados (poema «Pode ser Pepsi?»)
(parte IV). Mas não estamos a falar de um livro de história, ou de teoria, mas
de um livro de poesia. E é este o lado inovador, a original sobredeterminação
destes poemas «fotográficos»: trata-se ainda e sempre, em cada um
deles, de reter a «densidade» ou o «lume», como
aqui se diz, de certos instantes, só que agora a maioria desses instantes
epifânicos não se destaca apenas do fluxo do tempo quotidiano mas
simultaneamente do fundo de um outro tempo para lá desse tempo líquido, de um
tempo de pedra, petrificado, preservado quer nos testemunhos arquitectónicos,
artísticos, museológicos, etc., visitados pelo poeta, quer na matriz
mediterrânica, na mediterranidade abstracta, da alma europeia. É o peso da
História, da sua presença, dos seus vestígios gloriosos sobreviventes do
seu «lodo» de esquecimento (poema «O lodo da
História»), sobre o qual vem agora pousar o peso próprio do instante
presente arrancado por condensação poética da liquidez do tempo. Condensação
essa que um poema formula em versos esplêndidos: «(…) é necessário um
peso de / mágoa acumulada para / que uma gota de chuva se disponha / a ser
lágrima (…)» («Segunda parte da vida»).
Não obstante a arrumação geológica da
maioria dos poemas do livro, outros há, em cada uma das partes, exteriores a
essa geologia, à lógica dos estratos. São ainda fotopoemas de instantes
desprendidos da irrelevância dos momentos mais quotidianos, da dissipação sem
rasto desses momentos, pequenas histórias sem História algumas das quais ao
nível das melhores poesias do livro. Caso, por exemplo, de «Em segunda mão»,
do comovente poema à memória de Paulo Cunha e Silva «Aquilo
que é infinito» e, talvez o mais belo de todos, de «O gato não
quer movimento», que lembra, até pela excelência, os poemas de Manuel
António Pina sobre gatos: «Longas tardes passa o gato
espojado / a meditar (de quem é o gato o espectro / cabe ao gato / revelar). A
manhã inteira ocupado a / anular movimentos / (uma folhinha pelo chão / a
teimosia do vento) coisas / que façam barulhos ou se movam insistentes: / no
seu território / não. / Ruínas a toda a volta. Silêncio / dentro do silêncio. O
/ próprio tempo parado para / dar o exemplo».
Por outro lado, transversal à
generalidade dos poemas do livro, e traço desde sempre essencial desta poética,
o humor. O sentido de humor mas, mais ainda, o humor como sentido, produção de
sentidos poéticos paradoxais. E já esta expressão é equívoca, um verdadeiro
truísmo, porquanto o sentido, em qualquer ordem discursiva, é necessariamente
paradoxo, sentido produzido contra a doxa, contra o «sentido» aparente
das coisas ou senso comum, e a fortiori na poesia, em que se
trata de aceder a sentidos não prosaicos das coisas prosaicas, a uma «poeticidade» das
coisas como sua dimensão ontológica obscura, inexplicável, irreconhecível pela
sensibilidade profana. Formidável humor recorrente destes poemas de JLBG,
o humor, também ele, como paradoxo, revelação de um extra-sentido propriamente
poético das coisas e do vivido para lá do seu sentido banal. Mas uma revelação
que há que produzir, que condensar como atrás se afirmou, que só se revela, só
se «oferece», na medida em que a linguagem a revela, que só existe
nessa exacta medida das palavras reveladoras, ou «entre» elas
(pois que a genuína poesia consiste sempre em dizer algo que por natureza
excede o dizível, todo o poder da linguagem, e que apenas se deixa dizer nos
interstícios das palavras, como um silêncio aberto nelas ou um além delas). Não
há revelação poética sem essa prova linguística do impossível, da
impossibilidade de dizer o que todavia há que dizer e que sem esse dizer não
chegará a existir: «se eu não guardar num poema esta hora atravessada
/ nem ela nem esta tarde alguma / vez existirão» («História de uma
tarde»).
Ou seja, não há poesia sem a consciência
do conflito absolutamente aporético entre a sensação a exprimir pela linguagem
e a sua indizibilidade, entre a língua e ela mesmo, sem o poeta, palavra a
palavra, «lutar contra o poema» («Segunda parte da vida»). Poesia,
ofício de paciência na imagem de Eugénio de Andrade, criação
operária, tudo menos inspiração. «(…) chamam-lhe epifania mas / é
muito mais do que isso», nos termos do próprio JLBG num dos
poemas deste livro («Linhas sobre a duração»). Certo que, conforme o
mesmo poema, o instante da sensação poética é «uma oferta da tarde».
Mas uma oferta que acontece nas palavras, que é sobretudo o instante em que a
sensação se faz palavra, e esse fazer requer uma sensibilidade excepcional,
tanto à realidade como à linguagem, uma atenção ou expectativa «para o
caso / de» (ibidem) (desse acontecimento), uma espera mas não
passiva, uma espera activa: «é / preciso estar à espera para o poder
perceber / (esse instante provisório não se faz anunciar) / (…) / É preciso
estar à espera para o poder intuir» (ibidem). Dessa intuição, e
da sua restituição numas poucas palavras «fotográficas», da
experiência do inefável escavada na linguagem, são tecidos os mais belos textos
deste Mediterrâneo.
Um grande poeta é, entre nós como lá fora, um ser muito mais raro do que se pensa. JLBG mostra aqui, se dúvidas ainda houvesse, que é um grande poeta.»
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO, Gazeta das
Caldas, 17.3.2017
«Desde «Há violinos na tribo»
(1989) que João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) tem afirmado
uma poesia com voz própria e autónoma mesmo quando intercala outras vozes no
discurso do poema. A citação de abertura (Pedrag Matvejevitch) envolve
um plural em contradição com o singular que o assina: «Não sabemos ao certo
até onde vai o Mediterrâneo». O poema «Os argonautas em Óia» parece
ser o ponto de partida deste conjunto: «Para alguns o /fim da terra é
decerto /o fim do mundo. Para outros o/ fim do mundo é/o princípio da viagem».
Mas a viagem não é o simples registo de partidas e chegadas; é a inscrição do
labor oficinal: «Chegou ao fim / a recarga da caneta que em deste / depois
de um dia de chuva a/ lutar conta o poema.»
Entre a Natureza e a Cultura, a voz do
poeta interpela Deus. Pode ser em Jerusalém («Logo à entrada da praça
/ do templo de Salomão / um soldado israelita buscara em nossa posse / a arma
de onde pudéssemos extrair a / Morte ou o Mal». Ou então em Marraquexe: «do
alto do minarete do souk de Marraquexe / o chamar do muezin faz questão de
relembrar / que Maomé é o profeta / (o Deus único é Alá) / nessa canção que o
estrangeiro não resiste / a imitar /(ignorante e feliz) num tom / «mais ou
menos» / árabe». Outras vezes o poema oscila entre a Geografia e a História.
Por exemplo: «Agora é a vez de deixar / que seja o mar a tocar-nos / (o mar
interior primitivo o caldo primacial) / ontem rasgado por remos da Fenícia até
Cartago». Ou então: «Dobram os sinos católicos para celebrar a vida –
onde se ergue esta igreja já foi / um templo pagão (usada como celeiro teatro
prisão e paiol). Os muros foram somando / lições de arquitectura (Gótico sobre
Românico Barroco sobre Renascentista) dando vida/ à língua morta com que estas
paredes rezavam.»
O quotidiano está presente; seja individual seja colectivo. Primeiro caso: «As perucas das senhoras em quimioterapia uma / vez por semana fogem para o cabeleireiro». Segundo caso: «Na viagem para Auschwitz a lenha alimenta o vapor. Por fim respiramos fundo. /Que mais pode acontecer?» E afirma o poeta – «Não gosto do Mediterrâneo / transformado em cemitério.» Por sua vez o autor da citação inicial avança no final com uma ideia oposta: «Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém.» Talvez porque nada existe de mais parecido com um poema do que o azeite em repouso nas tarefas dum lagar.»
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