52 pequenos poemas em prosa
(Café Corcel, Porto, 1994 - 1995)
1ª edição, Mariposa Azual,
Lisboa, 2000, fora de mercado
capa de Olímpio Ferreira a
partir do desenho de Jorge Colombo, «Café Corcel», 2000
direcção literária de Helena Vieira e Nuno Moura
2ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa, 2011, esg.
3ªedição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa,
2023
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MANUEL ANTÓNIO PINA, apresentação de "Lugares Comuns" no Café Majestic, Porto, 01.07.00
«"Lugares Comuns" é o quarto livro de João Luís Barreto Guimarães, depois de "Há Violinos na Tribo", "Rua Trinta e Um de Fevereiro" e "Este Lado Para Cima"; e é, provavelmente, todos eles e, se calhar, todos os outros que João Luís Barreto Guimarães há-de ainda escrever. Porque é um livro de tal modo único e idêntico que é difícil deixar de pensar que essa identidade possa configurar, configure, também uma identidade literária, a identidade de um escritor. Principalmente sendo esse escritor um poeta, alguém habitando os lugares mais fundos e mais perplexos da identidade. Talvez este livro seja então, quem sabe?, uma breve, uma brevíssima, epifania do absoluto livre a venir que a poesia de João Luís Barreto Guimarães - como faz cada obra literária - melancolicamente persegue. São 52 pequenos textos ligados por um comum fio de sentido: o tempo e o lugar do Café. A vontade de verdade, ou vontade de crónica (digamos assim), de João Luís Barreto Guimarães vai ao ponto de os referir a um Café concreto, o Café Corcel, e de os datar de cada uma das quintas-feiras de 1994 e 1995, organizadas regularmente (13 em cada ciclo) segundo o ritmo natural (digamos também assim) da sucessão ascendente das estações: Outono, Inverno, Primavera, Verão. O processo revela, sabiamente, o que a natureza circunstancial dos textos oculta: que o tempo do Café é o tempo da vida, e o seu lugar a morada, o lugar-comum, do Mundo. A palavra, muito particularmente a palavra poética, é, aqui, o ponto fixo a partir do qual o poeta, da sua “mesa do canto”, preenche de Mundo o olhar. O Café é então uma espécie de aleph, público e repetido, onde o Mundo se repete. Um Mundo que se volta para dentro (ou para onde o dentro se volta), e em cuja superfície se abrem, subitamente, brevíssimos abismos sobre o ser e sobre a vida. Repetição do Mundo que é tempo, presente e passado, e passagem. Passagem de tempo e passagem de gente, que deixa sinais, destroços, vestígios, a que a palavra poética procura dar um rosto. E também, fértil e levíssima, passagem dos sentidos a sentimentos. No tempo do Café confluem os tempos inúmeros da vida, desde o da “mesa do casal de idosos [que] guarda agora apenas um”, ao tempo de um fósforo ou de um cigarro que se apaga, ou, mesmo, ao tempo anterior e exterior ao Café ou ao tempo suspenso da escrita. O corpo do Café é feito de pequenas e efémeras circunstâncias, de instantes, de olhares, de palavras partilhadas (e de beijos também, nem que seja apenas numa chávena mal lavada), de cumplicidades, de incomunicações, de presenças e ausências, e nesse corpo coincidem múltiplos e dispersos territórios (lugares) comuns, de fronteiras dificilmente discerníveis, num melancólico corpo-a-corpo como o do poeta com a sua tinta e o seu lápis (e as suas palavras). Todo esse fluxo de vida e de existência chega ao olhar e ao coração (e ao caderno) do poeta e, aí - no olhar, no coração e no caderno, que não são instâncias substancialmente distintas -, transformam-se, (querem transformar-se) em palavras. E o poeta oferece-nos o espectáculo desse obscuro querer sob a luminosa forma de rápidos apontamentos ou [instantes], e frequentemente enternecidas, considerações, também ele, como o dono do Café, “acredita[ndo] no conhecimento apenas através da experiência”. Poesia, pois, da experiência, o que quer que isto queira dizer (porque, provavelmente, toda a poesia de algum modo o é). Experiência das coisas e do Mundo, e da relação com o Mundo, e da relação com os outros, e da relação consigo mesmo através dos outros e do Mundo. O que João Luís Barreto Guimarães faz através da imagem surpreendente e fulgurante; da palavra inesperadamente exacta; do sábio sabor de um silêncio, uma luminosa fenda, entre uma frase e outra; da expressão que se suspende até à impressão; d[a] incisão de um adjectivo ou de um verbo, ou de uma construção subitamente insólita; ou, enfim, através da rapidíssima fanopeia, nas fronteiras do haiku. Quantas vezes, a meio da leitura, eu fechei lentamente este livro sobre os joelhos, com os dedos abandonados entre as páginas, tocado por uma palavra ou por um fio de palavras, e posto de repente perante mim mesmo, ou daquilo que, em mim mesmo é - que sei eu? - mais secretamente idêntico, e levado, também eu, à conta do pulsante ritmo do seu (deste livro) coração?»
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO, Notícias da Amadora, 27.07.00
«Um verdadeiro lugar comum a estes poemas (que nunca deslizam para o lugar-comum...) é o café, qualquer café capaz de servir de porto de abrigo à oficina do poeta. (...) Mas o café surge igualmente como espaço de transfiguração. A realidade ganha contornos e dimensões inesperadas. (...) Montra de loja ou porto de abrigo, o café é sobretudo um lugar de pessoas, uma paisagem povoada. (...) Metáfora do Mundo, o café pode igualmente surgir como uma sala de perguntas onde o poeta se interroga, interrogando o tempo através das palavras.»
FERNANDO SOBRAL, Diário Económico, 04.08.00
«Um café pode ser um local de encontro, o epicentro de tempestades sem fim, de sonhos com prazo, de paixões escorregadias. Nas mesas de um café pode construir-se um mundo. Ou, simplesmente, pode encontrar-se nelas o local propício a pequenas reflexões, fruto destes radares que são os nossos olhos, quando estão longe do stress e têm tempo para focar os pequenos gestos. João Luís Barreto Guimarães consegue trazer-nos retratos (ou seja, pequenas histórias) a partir de uma mesa de café, no Porto, é claro. São textos curtos, incisivos. (...) Há que descobr[i]r estas histórias. Tão simples, sobre a complicação dos nossos dias.»
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS, Record, 09.08.00
«É um dos mais interessantes e comoventes poetas portugueses de hoje – praticamente desconhecida, a sua poesia é uma luminosa linha de água sobre as nossas vidas.»
Jornal de Letras, 20.09.00
«Desde o seu livro de estreia, "Há Violinos na Tribo", em 1989, que João Luís Barreto Guimarães se revelou (...) um dos mais originais e sensíveis poetas aparecidos nos últimos anos, fora dos cómodos modismos dominantes. Além disso, é também um interessante cronista, (...) é exactamente no JL que tem saído, embora de forma bastante irregular, a sua coluna "Humor Vítreo". Pois este seu quarto título – reunindo textos escritos no Café Corcel, no Porto, em 1994/95 – tem a ver com aquelas duas qualidades – a do poeta e do cronista. Juntos ou fundidos, com resultados à vista...»
RAMIRO TEIXEIRA, O Primeiro de Janeiro, 19.10.00
«Porto de abrigo propenso à deambulação e simultaneamente epicentro, centro do mundo, os cafés são por natureza centros fragmentários de existência, o que não invalida de que neles se gerem emoções resguardadas em tranquilidades aconchegantes. É sob este signo, desta opção do disperso para o global, sem ímpetos emocionais de grande intensidade, antes, mesmo, de pacificação quotidiana, que estes textos de João Luís Barreto Guimarães se articulam e, de alguma forma, em oposição ao real objectivo, adquirem, por esta via, um carácter surrealizante. Desta forma, o autor, porventura, mais poeta que cronista, qual ilusionista capaz de retirar da cartola o mais inesperado, nos surpreende com o sentido de uma persistente intranquilidade pessoal a coberto das coisas mais comezinhas que observa da mesa que ocupa num café! - mais justamente às quintas-feiras, provavelmente o seu dia de folga. Temos, assim, uma espécie de diário semanal descodificador duma estrutura-vivência social de lazer, enredada na irrealidade do real que transporta, justapondo a objectividade com o subjectivo, a consciência com o inconsciente, o tempo de uma intimidade pessoal com o tempo latente, colectivo e impessoal, que o circunda. Sobre esta duplicidade ou sobre este monólogo feito de vários reais gerados pelo espírito do lugar, faz o autor espírito desse espírito, transfigurando espaço, atitudes e posturas comuns, em invocações capazes de reinventar sentido [às] coisas aparentes e dir-se-ia importantes. E fá-lo não para alardear visões de realidade superior, mas tão-somente para mesurar epifanias comuns à condição humana. E daqui resulta um outro aspecto curioso que estes textos evidenciam: o do autor não necessitar de recriar símbolos de escrita, pois que o real que ele capta é já em si um símbolo. [Donde, ainda, serem estes textos mais mediação do que materialidade, mais elocução do que elucubração. Intensificando, talvez, mais a intenção de dizer do que propriamente o dizer em si], João Luís Barreto Guimarães soube esquivar-se ao charco comum dos lugares-comuns, orientando o desencadeamento do inesperado para o efeito de uma inovação do quotidiano, temperado por ironias e saberes só possível de realizar por quem, há muito, sedimenta uma estrutura verbal inequivocamente poética.»
FERNANDO GUIMARÃES, Jornal de Letras, 15.11.00
«Modernismo, Vanguarda, Decadência, Kitsch e Pós-Modernismo - Foi publicado entre nós, um já consagrado livro de Matei Calinescu cujo título é "As 5 Faces da Modernidade". (...) M. Calinescu acaba por admitir uma existência dual e ambígua da modernidade. Assim, há a considerar nela um empenhamento na inovação, no modo como se assume o experimentalismo literário e, por outro lado, uma recusa da racionalidade que derivaria de certos paradigmas filosóficos cujas referências mais longínquas estariam na tradição iluminista da cultura europeia. [O] Pós-Modernismo sempre se mostrou interessado em recuperar eclecticamente a arte do passado desde que ela fosse assumida sob uma forma revivalista (...). (...) Seria um erro que tanto o Modernismo como o Vanguardismo tenham persistido inalteráveis. É certo que nos referimos a um anunciado esgotamento das Vanguardas... Mas a poética da modernidade não se esgotou e deflui, sob várias formas mediante transformações significativas, para a poesia que hoje se escreve. (...) Se falássemos nas cinco faces do Modernismo, seríamos talvez levados a dizer que tal poesia ["Lugares Comuns"] se aproxima mais da última, a do Pós-Modernismo. O autor confronta-nos com uma poesia cursiva, divagante. No entanto, ela encontra-se centrada num ponto de vista: o do olhar de alguém que, numa mesa de café, olha à sua volta e escreve, mesmo quando a própria escrita fica interrompida na palavra que não se acaba (...).»
PEDRO MEXIA, Diário de Notícias, 16.12.00
«A renovação da poesia portuguesa faz-se com algum vagar mas, ao contrário do que alguns pretendem, vai acontecendo. (...) Em geral, os poetas portugueses revelados nas décadas de 80 e 90 - e que, se virmos bem, formam apenas uma e não duas gerações - não têm tido um ritmo de publicação muito constante (...). Na verdade, até podemos atribuir parte da falta de nitidez geracional a essa publicação esporádica. João Luís Barreto Guimarães é um bom exemplo: estreado em 1989 com "Há Violinos na Tribo" (ed. autor), publicou apenas mais duas obras, ambas nas edições Limiar: "Rua Trinta e Um de Fevereiro" (1991) e "Este Lado Para Cima" (1994). Nestes livros, a voz de J. L. Barreto Guimarães distinguia-se sobretudo por usar livremente a forma do soneto para, com grande habilidade formal, fazer do soneto o ponto de encontro de todos os géneros poéticos e de todos os registos, mas sobretudo de um autobiografismo irónico atento à passagem do tempo e à melancolia. JLBG regressa agora, [seis] anos depois, com este "Lugares Comuns" (...), livro constituído apenas por poemas em prosa. O poema em prosa, ainda mais que o soneto, é o lugar-comum do diário, do aforismo, do escrito íntimo. E se isso é assim interiormente, é porque exteriormente o lugar-comum de que aqui se fala é o café, não apenas um café específico (o Corcel, no Porto), mas o Café enquanto lugar privilegiado da observação do mundo que leva à escrita. Verlaine, Kavafis, Pessoa, muitos foram os poetas que fizeram do café o seu local de trabalho, e não é por acaso que "Lugares Comuns" abre com uma citação do "Livro do Desassossego", esse magnífico híbrido pessoano (diário?, poema?, esboço de romance?) e fecha com outra de Jaime Gil de Biedma. O livro acompanha todas as quintas-feiras de um ano (1994-95) e as suas quatro estações. O poeta de café é, mesmo que não o queira, um voyeur. Voyeur desde logo das outras pessoas que frequentam o café, dessas mil e uma personagens: namorados, solitários, arrumadores, empregados, o primeiro cliente a entrar, e por aí adiante. Assim o eu dos poemas, na sua mesa de café (sempre o mesmo café) observa as conversas, as trivialidades, os dramas íntimos, todo o tecido verbal e não-verbal de um sítio de convivência precária, gestos, hábitos, manias, silêncios. (...) Mas para além das pessoas também há o espaço físico, a própria geografia do café, a vida dos objectos, a mudança de lugar do copo, o acender do cigarro, o lápis que se acaba e acaba o poema a meio de uma palavra (...). O café pode ser uma montra, um esconderijo, ou apenas aquele “lugar limpo e bem iluminado” de um belíssimo conto de Hemingway. Enquanto escreve nestas manhãs ou tardes perdidas, o eu está a trabalhar nessa deliciosa mistura entre ócio e ofício de que os artistas por vezes desfrutam. O essencial é a consciência de jogo físico e de jogo de pensamento que implica a permanência atenta num café, pensamentos eróticos e paradoxais, compassivos e irónicos, mas sobretudo reveladores da mais evidente solidão. E por entre os sons e os silêncios, o movimento e a calma, o poeta tem intuições geniais como esta: a de que as gorjetas compram o silêncio.»
JOSÉ RICARDO NUNES, Ciberkiosk, Dezembro 2000
«Comecemos pelo título e suas ambiguidades. É que "Lugares Comuns" permite apontar para vários sentidos, ainda que eventualmente possam convergir. Um primeiro lugar comum pode ser a língua e o espaço do literário, marcados pelo desejo de partilha, o que é reforçado tanto pelo carácter confessional de alguns textos e pelas hipóteses de experiências de intersubjectividade que outros nos propõem, quanto pelo apelo dialogante que de várias maneiras é dirigido ao leitor. Registe-se igualmente que os pequenos poemas em prosa se centram no quotidiano e na revelação de pequeníssimas verdades ou óbvias evidências, ou ainda na formulação de possibilidades de explicação de factos ou situações triviais, mas sobre as quais se tem um insuficiente conhecimento; os textos preferem esses lugares-comuns e afastam-se de temas maiores e de grandes questões. Finalmente, releve-se o lugar-comum chamado café, para onde a esmagadora maioria dos textos nos remete directamente – quer enquanto cenário, quer enquanto espaço que propicia vivências específicas – e onde os mesmos terão sido escritos: "Porto, Café Corcel, 1994-95". Um outro aspecto a ter em conta consiste na própria estrutura do livro. O volume é composto por quatro secções: "Outono, à Quinta-feira", "Inverno, à Quinta-feira", "Primavera, à Quinta-feira" e "Verão, à Quinta-feira". Todos os textos, aparentemente, são escritos às quintas-feiras (e teríamos aqui, ironicamente, uma versão semanária do diário) ou a este dia da semana se reportam, correspondendo o título de cada poema ao respectivo dia e mês, assinalado a vermelho no caso de dia feriado. Contamos, assim, entre 21 de Setembro (assinalando o começo do Outono) e 12 de Setembro (sinalizando o fim do Verão), 52 textos, os quais correspondem a todas as quintas-feiras do ano em causa. Estamos perante uma estrutura circular, potencialmente cíclica (o que é acentuado pelo facto de João Luís Barreto Guimarães ter optado pela sucessão das estações do ano, em detrimento do ano civil); todavia, o facto de o primeiro texto do livro se reportar ao Outono e à sua primeira quinta-feira não deixa de ser arbitrário, no contexto dessa estrutura (e um dos privilégios do leitor é, precisamente, não aceitar a ordem proposta pelo autor), podendo o ano em questão ser começado em qualquer outra quinta-feira; registe-se ainda o final inconclusivo do último texto, que deixa no ar a suspeita de que o livro não é continuado por falta de lápis e que o abre, assim, a uma possível continuação (...) ; por outro lado, a estrutura circular e cíclica faz coincidir o fim com o princípio, ou seja, após o termo do Verão há forçosamente um regresso ao começo do Outono, ao início de novo ciclo – o que, no limite, torna possível fazer tábua rasa do próprio livro, esvaziá-lo, pois afinal ele é constituído apenas por meros lugares comuns... Refira-se que a forte componente formal deste livro não me parece, em si, ser novidade na produção literária de João Luís Barreto Guimarães; efectivamente, nos seus três anteriores livros (...) é possível registar – com uma ou outra excepção que assumidamente confirmam a regra – uma clara obsessão pelo poema de catorze versos, pelo soneto, embora essa forma seja dinamitada das mais diversas maneiras; em "Lugares Comuns", podemos dizer que o imperativo formal se fixa mais na estrutura do próprio livro, com uma arquitectura muito marcante. Retomando as questões afloradas no parágrafo anterior, é de notar o apelo ao virtual, ao que se encontra em potência, ao possível, ao que poderia ter sido. Logo no texto de abertura, por exemplo, a ocupação do escritor é descrita como um infrutífero jogo em que se procura adivinhar ou, se quisermos, em que se tenta completar o cenário – mas sem a pretensão de apresentar visões totalitárias – a partir de dados parciais ou incompletos (...). A mesma ideia parece-me ser prosseguida noutros textos (...). E é uma ideia onde me parece pairar alguma da sombra de um Pessoa no formato Bernardo Soares, o qual é deliberadamente convocado por João Luís Barreto Guimarães, sendo relevante assinalar que esta citação do "Livro do Desassossego" antecede os textos de "Lugares Comuns" (...). João Luís Barreto Guimarães parece propor-nos uma autobiografia irónica, agora com alguns factos, aprendida que foi a lição de Pessoa/Soares, e resolvida à superfície, de forma inócua e inocente, como convém nesta recta final do século, a oposição entre a vida e a arte da escrita. A explícita presença de um sujeito, frequentemente configurado como sujeito-autor, deve ser registada. Para tanto contribuem não somente as informações relativas ao alegado espaço-tempo da escrita, mas igualmente dados biográficos, ficcionados ou não. A presença desse sujeito-autor, que é também, paradoxalmente, um sujeito-actor (...), é ainda consolidada pelas múltiplas alusões à própria escrita, no que muitas vezes é ainda uma encenação do acto da escrita (...). O non-sense, o fait-divers, as mínimas aventuras do quotidiano – eis as pequenas experiências de que este livro se alimenta e que neste livro se convocam (...). Existe um claro fascínio pelo texto curto, próximo do aforismo, da máxima, do dito sentencioso, ou pelo texto que surpreende o leitor – não raramente pelo fim de todo inesperado – ou lhe coloca dificuldades (...). É ainda de notar a forma como olhar, silêncio e escrita se articulam neste livro. O sujeito, no café, olha e é olhado, assiste como espectador, mas forçosamente participa, o que o transforma também num espectador de si próprio. O café surge como microcosmos, lugar que representa o mundo. (...). Por outro lado, o silêncio surge, em complemento desse olhar, como um oásis face ao incessante linguarejar equívoco que inunda o mundo e os seus múltiplos cafés (...). A poesia está então muito para lá das palavras, nesse silêncio interior onde o acontecimento pode ter lugar. E esse é o mundo virtual do silêncio, do que não pode ser retido, do que ficará para sempre por exprimir, embora tenha o maior merecimento (...). É um silêncio confiante e positivo. Não é o silêncio de quem já disse tudo, é o silêncio de quem se guarda para o que tem a dizer (...). Ainda que a escrita faça doer, não retire de cima qualquer peso, não permita descansar (...) .»
MANUEL DE FREITAS, Expresso, 19.05.01
«É bem conhecida (embora cada vez menos valorizada e praticável) a importância literária dos cafés, não apenas enquanto lugares de encontro e de celebração da palavra mas também como tema inspirador de certos grandes poetas. Pense-se, por exemplo, no caso dilacerante de Mário de Sá-Carneiro – “Nos Cafés espero a vida/ Que nunca vem ter comigo” - ou nesse livro admirável que é "Café de Subúrbio", de António Manuel Couto Viana. É óbvio que os cafés, esses lugares mágicos onde se podia desfrutar a felicidade triste de não ter pressa, são hoje quase inexistentes. No Porto, porém, sobrevivem ainda o Majestic, o Guarani, o Ceuta ou o Corcel, onde foi escrito ou imaginado o mais recente livro de João Luís Barreto Guimarães. Acrescente-se, em abono da verdade, que em Lisboa semelhante tentativa de listagem resultaria num obituário bem mais evidente. Começará por surpreender, num autor que tem vindo a demonstrar uma mestria invulgar e inovadora na arte do soneto, o facto de "Lugares Comuns" ser exclusivamente constituído por aquilo a que se convencionou chamar poemas em prosa. Desengane-se, no entanto, quem julgar que essa mudança formal resulta em apoucamento poético. De resto, estamos perante um daqueles livros em que a sedução visual (magnífica capa de Jorge Colombo) se vê exemplarmente prolongada pela inteligência e sensibilidade dos textos que o compõem. Também a epígrafe inicial, da autoria de Bernardo Soares, se revela de algum modo sintomática, na medida em que João Luís Barreto Guimarães comunga dessa virtude eminentemente criadora que é a atenção à importância (metafísica, diria Soares) das pequenas coisas, sejam elas uma moeda caída sob dois olhares (...), a rotação pelos vários clientes do café de uma chávena esquinada na qual “não é fácil lavar um beijo” (...), ou a mudez de um casal cuja quieta melancolia é descrita com a precisão e o fascínio de certos quadros de Hopper (...). Sem sombra de epigonismo, poderíamos ainda relacionar com o universo de Bernardo Soares outros dois aspectos fortemente acentuados em "Lugares Comuns". O primeiro teria a ver com o modo sábio como certos textos explanam - e placidamente lamentam - as infalíveis regras do acaso (...). O segundo aspecto, por sua vez, reportar-se-ia à encenação que a escrita faz de si mesma (...). No final do livro, este processo chega mesmo a ser levado até às últimas consequências, convertendo-se na exibição possível dos limites físicos (e materiais) do acto de escrever (...). Mas, se é verdade que a agudeza baça tão própria do semi-heterónimo pessoano parece por vezes pairar sobre o “incómodo interior” (...) destas páginas, não é menos verdade que semelhante convivência literária é habilmente singularizada pelo olhar inventivo de quem fala em "Lugares Comuns". Sem ambições excessivas (e, provavelmente, obsoletas), os poemas de João Luís Barreto Guimarães procuram fixar e transmitir “o idioma do Café”, “uma língua própria [TALVEZ] somente inteligível pelo empregado de mesa” (...), que é, nos limites do seu reino, uma espécie de deus. É notável, neste livro em forma de café, o misto de humor e de ternura com que são descritos aqueles que aí procuram “um espaço menos ferido, para pousar as feridas” (...) - ou ainda a melancolia da ausência, associada a um casal idoso que ficou reduzido a um (a quem é preciso “lembrar que é ele quem está atrasado” ). O humor, no entanto, tende a apresentar-se como a arma dominante, ao longo destes textos pretensamente diarísticos e capazes, por vezes, de um elevado grau de concisão (...). Noutros casos, e sem prejuízo lírico, a concisão parece antes avizinhar-se do aforismo, não raramente iluminado por uma cruel sabedoria (...). O café, neste diário fictício ou verdadeiro (pouco importa), revela-se afinal “uma enorme montra de rua” que “se renova a cada dia, a todo o instante” (...). A fugacidade, a renovação e a consciência (menos trágica do que em Sá-Carneiro ou Álvaro de Campos) da passagem das horas serão talvez motivos que concorreram para a organização deste livro em estações (quatro, como as de Vivaldi ou Charpentier e cada vez menos nossas). Apesar de todo o humor inerente à voz poética de João Luís Barreto Guimarães, há momentos em que a elegia irrompe de um modo iniludível (...). De resto, tendo em conta o contexto (muito dificilmente separável do texto que o veicula), nada mais legítimo do que esse pendor elegíaco, numa altura em que “os Cafés (...) parecem cada vez mais, mundos silenciosos” (...). "Lugares Comuns" pode, evidentemente, ser lido como uma demonstração literária de fidelidade a um espaço preciso e ameaçado (disso mesmo fala o belíssimo poema da pág. 13), mas é muito mais do que isso, uma vez que se apresenta como uma “lição de coisas”, um espaço de partilha em que a poesia da experiência (haverá outra?) se sobrepõe às falácias da mera experimentação poética: “A todo o instante acontecem coisas que era importante reter, e são essas coisas poesia no seu estado mais puro” (...). Tal como este livro.»
ROSA MARIA MARTELO, in Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX, Porto Editora, Porto 2001
«Nascido no Porto a 3 de Junho de 1967, cidade onde exerce a profissão de médico, é como poeta que tem vindo a desenvolver uma obra singular, na qual a cidade do Porto tem, aliás, algumas vezes, uma presença notória enquanto espaço vivencial. Assim acontece em "Lugares Comuns" (2000), livro que, sob uma aparência quase diarística, reúne um conjunto de meditações poéticas suscitadas pela frequência semanal do Café Corcel, entre o Outono de 94 e o Verão de 95. Embora apresentado como um lugar comum - no duplo sentido de constituir um mundo habitual, rotineiro até, e também no de ser um espaço partilhado e, logo, comum a uma grande diversidade de rostos -, o Café, sempre grafado com maiúscula, é também um lugar abstracto e uma condição de meditação generalizante. Daí que, neste livro, tal como nos anteriores (...), seja de salientar o valor poético conferido a uma espécie de fragmento narrativo, no qual um acontecimento mínimo adquire inesperado relevo, tornando-se estranha mas impressivamente significativo. Este olhar, que confere a circunstâncias ocasionais e mais ou menos fortuitas um súbito poder de revelação, combina-se frequentemente com uma desmontagem dos registos linguísticos quotidianos, à qual não será alheio o esforço de renovação do discurso poético que se observa, por exemplo, numa metódica desconstrução do soneto, desenvolvida nos primeiros livros através de inúmeras revisitações desta forma fixa.»
Minguante, revista on-line de micronarrativas.
«"Lugares Comuns" ocupa um lugar incomum no corpo da obra que João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) tem vindo a dar à estampa desde a estreia, em 1989, com a colectânea de sonetos intitulada "Há Violinos na Tribo". Neste caso, o que temos é um livro de pequenas histórias – há quem lhes chame, por insistência, poemas em prosa – todas elas escritas à quinta-feira, numa mesa do Café Corcel, no Porto, entre o Outono de 1994 e o Verão de 1995. Publicado em Junho de 2000, na saudosa Mariposa Azual, este livro não poderia ser mais desconcertante, sobretudo se nos atentarmos aos tomos que o precederam. Os textos, devidamente datados, captam instantes da vida quotidiana, retratam os espaços de convívio com um sentido poético inusitado, indagam, como que voyeuristicamente, e com um sentido de humor bastante depurado, as malhas com que se costura o dia-a-dia urbano. Três exemplos, dos mais mínimos: «29 DE FEVEREIRO // O meu copo de água tinha menos goles do que o teu.»; «23 DE MAIO // Este fósforo corre risco de vida.»; «22 DE AGOSTO // À porta da casa de banho dos homens senta-se ocasionalmente, uma ou outra mulher.»
ROSA MARIA MARTELO, de "Cenas de escrita (alguns exemplos)", in "A Forma Informe - leituras de poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2010
«São muitas as representações do acto de escrita na poesia portuguesa moderna e contemporânea. Ora associadas a espaços privados e fechados, como a casa ou o quarto, ora situadas em espaços abertos e públicos, como o café, a taberna ou mesmo a rua, ora diurnas, ora nocturnas, as cenas de escrita nunca são inocentes. Muito pelo contrário, elas indiciam sempre uma poética e também uma ética da escrita. Com efeito, a questão de onde e como se escreve não é inócua nem destituída de sentido, sobretudo quando o acto de escrita é tematizado num poema. Faz parte da dimensão meta-reflexiva da poesia de tradição moderna a apropriação das cenas de escrita como um dos tópicos através dos quais a poesia se dobra sobre si mesma se mostra, pensa e analisa. (...) Situadas as mais das vezes em quadros de isolamento físico que a memória e a imaginação distende, muitas cenas de escrita se localizam também em espaços públicos que permitem um contacto mais directo e mais imediato com o mundo habitual. (...) E, de facto, como antes sugeri, já na poesia de Sá-Carneiro o café fora um espaço importante, e continuaria a sê-lo para outros poetas. Pense-se nos poemas de Café, de José Gomes Ferreira, escritos na década de 40, ou, mais recentemente, em Café de Subúrbio, de António Manuel Couto Viana (...). Ou pense-se ainda em Lugares Comuns, de João Luís Barreto Guimarães (2000), livro que se apresenta como inteiramente escrito no café Corcel, no Porto, ao longo de um ano. Todo o livro decorre da frequência de um café e da observação dos outros frequentadores: gente comum num lugar comum, que aponta para um escrever sobre pessoas comuns, em situações comuns, numa linguagem comum. Precisamente para fazer da poesia um espaço de partilha, de comunicação, num contexto de uma urbanidade onde a solidão e o desencontro se sentem como consequências de um acelerado processo de desumanização que também é político, e não apenas social, e menos ainda acidental.»
ANA MARGARIDA SIMÕES FALCÃO SEIXAS, in "OS NOVOS SHÂMANES - Um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa Mais Recente", dissertação de doutoramento, Universidade da Madeira, Funchal, 2003
«Por vezes, a fragmentaridade das cenas faz parte de uma unidade cenográfica relacionada com um tema que percorre a série de poemas de um livro, funcionando, deste modo, como uma espécie de estratégia discursiva que permite o reenvio dos poemas uns para os outros. Por vezes, até, esse reenvio é deixado à hipotética arbitrariedade da escolha do leitor, o que acentua o jogo de interacção complementar das cenas nas possibilidades de enunciação narrativa. Podemos encontrar este tipo de jogo de módulos articuláveis na poesia de João Luís Barreto Guimarães, que exemplificamos com dois excertos de Lugares Comuns: “Tentar adivinhar quem poderia ali ter estado. O tempo que terá deixado, o gosto ou não por tabaco, definir esse rosto pelo rótulo do que bebeu, atribuir-lhe uma idade, um sexo, um perfil, explorar cada detrito na resenha de vestígios.”; “Um Café, o espaço físico de um Café, o vidro que lhe corre a fachada, não deixa também de ser em si mesmo uma loja, uma enorme montra de rua para onde quem lá passa pode demorar o olhar, não apenas pelo que aí é visível todo o dia mas também para quem, dentro, sob as mesas se senta.” O Café funciona, ao longo do conjunto de poemas, como um cenário recorrente que permite o contar de uma dupla história: a história do próprio «Café» e das pessoas que o frequentam, e a história da escrita que o narrador escreve no café, e sobre a qual se interroga e da qual conta os procedimentos, num processo de hipotipose: «Abro o caderno e escrevo que estou a escrever no caderno». O leitor é livre de percorrer a «história do Café», saltando a «história da escrita», ou seguir esta, ou seguir ambas simultaneamente. No entanto, qualquer que seja a opção de leitura, ela terá sempre a protecção do uso da prosa e da continuidade do quotidiano cenário do «Café» como suporte da concatenação do relatar do quotidiano da escrita. É do silêncio subjacente a estes actos-cenários que flui a musicalidade narrada dos pequenos acontecimentos e dos avanços e recuos da escrita e o completar do ambiente no qual ela se processa.»
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