O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS (edição brasileira)

150 poemas escolhidos
(Porto, Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 1986-2020)

7 Letras, Rio de Janeiro, 2021

capa de Sofia Vaz
direcção literária de Mariano Marovatto e Jorge Viveiros de Castro

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EUCANÃA FERRAZ, posfácio à edição brasileira de "O tempo avança por sílabas", 2021
À medida

«Em 2019, João Luís Barreto Guimarães publicou em Portugal O tempo avança por sílabas, reunião de cem poemas escolhidos em seus dez livros publicados de 1986 a 2018. O mesmo título traz agora, para o leitor brasileiro, aquela antologia, bastante aumentada com poemas de um volume lançado em 2020, Movimento, mais alguns outros textos que haviam ficado de fora da edição portuguesa.

O belo título desta generosa coletânea é revelador. E nele repercutem outros nomes.

A Parte pelo todo (2009) define de forma literal o modo mais corrente de construção da metonímia. E, com isso, dá a ver também uma atitude poética e existencial decisiva da escrita de João Luís Barreto Guimarães: voltar-se para as pequenas coisas a fim de vislumbrar aquilo que repercute em seus entornos – as ondas de significado que se expandem a partir do mínimo.

Estamos diante de uma poesia que se volta para a presença das coisas e que não se cansa de pesquisá-las como rastros ou restos que testemunham a presença humana ao longo dos tempos. Se o projeto é ambicioso, em vez de procurar as grandes narrativas ou iludir-se com uma espécie de capacidade pan-óptica, ele se dá na contramão de qualquer grandiloquência, recusando a mistificação da palavra poética e do poeta. Podemos dizer que há um abandono da desmedida em favor da medida. Entenda-se com isso um modo de a poesia instalar-se no mundo guiada por certos valores: a inclinação para a matemática das coisas miúdas, para o ajuste e a contenção, para a exatidão e a clareza.

Há uma atenção voltada para os objetos cotidianos e seus modos de estar – a chávena, o caderno, a mesa, a cadeira, um fósforo, o cinzeiro, uma gota de café, o estrago no puxador da porta da cozinha, o lixo, etc. A escrita se faz como um livre estudo imaginativo e emotivo do mundo sensível, dos seus ritmos e de todas as qualidades sensíveis que subsistem na esfera íntima como testemunhos materiais, nos quais é possível flagrar as secretas e invisíveis forças que nos movem desde sempre.

É eloquente que um dos livros representados aqui tenha como título Lugares comuns (2000), com o que se nomeia os limites da vizinhança, ou seja, do que se mostra contíguo ao sujeito – a casa, a rua, o bairro, a cidade e seus personagens de todos os dias – mas revelando igualmente uma atitude face à linguagem, que se dá no mesmo diapasão de simplicidade e limpidez.

O título do livro seguinte, Rés-do-chão (2003) aponta para a mesma direção. Se o apego à matéria cotidiana e à linguagem sem ornamentos aproxima a poesia de Barreto Guimarães de certa tradição lírica brasileira – refiro-me ao modernismo e a seus vastos enraizamentos até aos dias de hoje –, nela ressoa sobretudo uma vertente portuguesa, materialista e substantiva, que vai a Cesário Verde, passando por Eugénio de Andrade, Alexandre O’Neill e Manuel António Pina. E é notável o quanto a poesia reunida em O tempo avança por sílabas alia o que nesses autores se faz pelas fileiras não raro antagônicas da ironia e da ternura.

Tão atenta aos espaços e às paisagens – pode-se dizer que a poesia de Barreto Guimarães é uma poesia do lugar –, esta é uma escrita cuja matéria fundamental é o tempo. A aposta parece ser aquela cunhada em forma de compromisso por Carlos Drummond de Andrade: “o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente” (“Mãos dadas”). Ao trazer para o poema o que chamei de rastros ou restos, João Luís Barreto Guimarães se instala na poesia portuguesa contemporânea como autor cuja matéria é o agora – frágil, fugaz, fragmentário, cuja inscrição se faz na matéria ordinária do mundo no instante mesmo em que tempo e espaço se materializam e se dissolvem sem trégua. A escrita se realiza, portanto, como atenção radical, entrega total e lúcida – incluindo-se aí a consciência da falha e do fracasso; afinal, como apreender o presente, que é, por natureza, efêmero e arredio?

Mas, em vez de recuar ou instalar-se confortavelmente em suas conquistas, o poeta foi além. É flagrante, nesse sentido, o quanto sua obra caminhou numa direção na qual os temas e os motivos alargaram-se para além do círculo estreito da individualidade. Sobretudo a partir de Você Está Aqui (2013), passando pelo esplêndido Mediterrâneo (2016), o eu, a casa, a rua, o bairro, a cidade e a paisagem cotidiana passaram a se situar em espaços mais generosos, como o país e o continente. Assim, permanece a sensação da parte pelo todo, mas o aqui é também a Europa, seu lugar no mundo e, consequentemente, sua situação ao longo da histórica e no presente. Não é por acaso que as viagens ganharam papel relevante e revelador.

Sim, o poeta avançou. Continua avançando. Fiel a si mesmo, avança passo a passo pelas trilhas dos antepassados e dos contemporâneos atento ao mais diminuto, às partes, ao que se quebrou, ao que se perdeu, ao que resta, recolhendo em frases despedaçadas os fragmentos de nosso tempo. O poeta avança, cuidadoso e firme, por sílabas.»


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