MOVIMENTO

 

43 poemas
(Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 2018-2020)

 

1ª edição, Quetzal, Lisboa, 2020, esg.

capa e fotografia de Rui Cartaxo Rodrigues
direcção literária de Francisco José Viegas

2ª edição, Quetzal, Lisboa, 2023

3ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa

 

> encomendar na BertrandWookFnac ou Almedina.

 

Grande Prémio de Literatura dst 2022

 

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GRANDE PRÉMIO DE LITERATURA dst, Braga, 9.5.22
(Declaração do júri Vitor Manuel de Aguiar e Silva, José Manuel Mendes, Carlos Mendes de Sousa)

«(...) pelos méritos incomuns na dicção e estrutura poéticas, marcadas por um sentido de rigor, concisão e problematização do quotidiano que assumem, no contexto em que se insere, um conjugar próprio de tradições decantadas até à singularidade merecedora da escolha efetuada.»

 

MIGUEL MANSOColóquio/Letras, n.º 210, Maio de 2022

MOVIMENTO

«Movimento, publicado, com ironia não premeditada, no início de um evento pandémico que obrigou a pausar gestos e deslocações a uma escala global, respeita uma coreografia dançada pelo autor em trabalhos anteriores. A previsibilidade não deve ser entendida de forma depreciativa ou redutora. Poderá, antes, ser suposta como variação de posições de um corpo em relação a um mesmo referencial, ou como a fixa e distintiva trajectória que cumprem os corpos celestes. Definições que são, de resto, mais concordantes com aquilo a que aludem o título e as partes: dia de Saturno; dia do Sol; dia da Lua; dia de Marte; dia de Mercúrio; dia de Júpiter; dia de Vénus. Um leitor distraído ou menos ilustrado poderá questionar-se sobre a escala para onde cada um desses capítulos aponta, se o que sobretudo se destapa neles é um composto de pequenas, quotidianas e antropocêntricas locomoções, a que se poderão atribuir grandezas opositivas e entrechocadas: «Retiro a tampa de prata do / ralo do lavatório e por instantes parece / que o ralo aspira tudo / (a barba na loiça branca / uma semana / feita em espuma)» (37) ou: «Os buracos negros são / as narinas de Deus» (26).

Desta semana planetária, concebida pelos antigos, derivam, afinal, os nomes por que são conhecidos os dias na maioria dos idiomas. O nosso figura do lado das excepções e é o único, entre as línguas românicas, que adoptou um sistema numeral alheio à mecânica celeste e ao perfil psicológico dos deuses a ela associados. Restaurado o sistema pagão original, o autor instaura um tensiómetro através do qual agrupa os textos segundo têmpera e voltagem. Esse tensiómetro é a lente, o guião e a régua sob os quais corre a energia. Como todo o calendário, também este transporta no seu lastro a ideia de circularidade que molda uma dramaturgia. O  autor locomove, em segunda mão, o que a vida — imparável, caótica e indomada — lhe entrega com o nome de ocorrências. Sinaliza, assim, o que lhe interessa (e é vário o acervo temático), captura, acomoda, transfaz e devolve à correnteza. Esta é a proposição de Movimento.

A poesia de João Luís Barreto Guimarães vem, desde os primeiros livros publicados, entrelaçando tudo o que lhe possa conferir estrutura e ânimo. Daí resulta o ponderoso detalhe de muitos destes textos deflagrarem dentro da sua forma, precisarem dela para acender na ideia. Tal acontece, por exemplo, quando se usa a cesura do verso para o re-significar: «o avô alinha os netos por alturas / do Natal» (32). Também quando se opera perto dos domínios de alguma poesia visual: «A / cada ano / que passa cai uma letra da placa que exigia / ‘Si ê  io’» (56). Os poemas resolvem-se, assim, operando tanto no sólito teatro das alusões como no insólito campo das ilusões (de óptica) e dos contrastes. São, tantas vezes, poemas para olhar e experimentar, promovem na leitura momentos de indecisão e escolha, o que é próprio de uma poesia que vai a jogo, ainda que o faça, como esta, dentro dos limites da tradição a que pertence e com a qual tão bem dialoga. É certo que este mecanismo vem sendo maturado e já não tem a exuberância primitiva dos primeiros trabalhos, em que o elemento lúdico se confundia com o próprio conceito geral da obra e cada texto escondia nele a sua própria solução (Este Lado para Cima, 1991).

O pendor humorístico desta poesia não resulta, o mais das vezes, do simples recurso à piada — embora esta surja diluída aqui e ali em anotações divertidas, como são as que compõem o último poema do livro, intitulado «Agradecimentos»: «Aos trombos / das minhas veias / por recusarem ser êmbolos. / Às amêijoas do Algarve / em especial às / que abriram» (77) —, depende, sim, do embutimento dos temas na forma, das mínimas emboscadas no trajecto da leitura, das subversões à regra, dos jogos de palavras, das observações surpreendentes e de uma curiosa e inexplicada habilidade em produzir (pelo menos com este leitor) sincronicidades. A maioria delas ocorrerá regida pelas leis do acaso, por exemplo, ler estes poemas num café (espaço de eleição para o poeta, que declarou gostar aí de trabalhar, e ao qual se refere amiúde) e a porta desse café em que se está lendo ser aberta ao mesmo tempo que a porta no café do poema, e sentir-se o mesmo, por indução: «Por vezes entra da rua / uma brisa fugaz tal / o feixe de um farol rodando uma esperança de luz» (31). Outras vezes, essa tendência para activar o acontecimento síncrono poderá ser conscientemente manipulada: «o rosto prometido ao sol / como liquidâmbares a arder (ao espelho / um do outro como quem sublinha versos / ou dobra cantos aos livros / ou dá de beber tinta / ao papel)» (68).

Interessaria apontar também, na escrita de João Luís Barreto Guimarães, uma disponibilidade para reconhecer como matéria da poesia aquilo que poderemos declarar como supérfluo, incompleto, destruído: «Ruínas / assim dispostas levam séculos a / conseguir» (13). Essa busca pelo referente inusitado, o pormenor obliterado, o acontecimento perdido no tempo que é «arquitecto do acaso» (13) confere ao eu lírico uma inclinação para a ubiquidade, que afinal só não cumpre por pudor ou por saber que lhe basta exercer o gesto da enunciação, de apontar um caminho, uma paisagem, uma inexistência, até, para que o leitor pondere hipóteses menos frequentadas: «Malgrado não tenha ocorrido ainda / celebra a / possibilidade» (55) ou: «em que lugar da Roma Antiga / estão perdidas as palavras (versos / estrofes inteiras) que Catulo / ou Horácio / libertaram dos poemas?» (18).

Continuando a sublinhar este ponto, gostaríamos ainda de razoar sobre as noções de retirada, de espaço em branco, de vestígio, de anonimato, que o autor (per)segue tratando como objectos do maior interesse. Os ossos de um cão do período mesolítico, que levantam todas as suposições — «é [sempre] mais o que não sabemos» (15) — e estas erguendo, por sua vez, o poema que lhes é dedicado; um utensílio humano, talhado na idade da pedra e que promove uma longa observação silenciosa, depois interrompida por outro objecto que vibra no bolso, a milhares de anos dali; esse gesto «frio / áspero / profundo» (21) com que um avô subtraía a vida a animais atados pelas patas, e de como eles partiam «em pouco mais que / minutos» (ibid.). De acumuladas ausências, também, se fazem estes poemas. E deste cúmulo, que se reconhece desarrumado, sem valor, «como moedas que sobram de viagens ao estrangeiro» (29), resulta a sua mais-valia.

Marte, nesta tessitura, determina o momento em que se pode esboçar, ao de leve, o gesto beligerante, promessa que vinha anunciada desde o dia anterior (o da Lua): «(encher o punho de tinta) e / disparar a matar» (34). Um disparo, afinal, académico, confirmado pelo recurso a uns tomates caídos numa estrada do Sul, «nódoas [possíveis] de um assassinato» (38). Em Marte, também, conjuga-se de longe a gramática do capital e da injustiça e vai-se engolindo a fúria: «Instruções para engolir a fúria» (42). Para logo recomeçar noutro sítio (noutro dia) e toda a violência adumbrada desembocar numa «cauda do / lápis roída» (45).

Os momentos solares entremeiam com outros, toldados por uma fina melancolia que, de resto, nunca escurece de forma desgovernada. Há uma rede de segurança, tecida pelo intelecto e o spleen, que previne esta poesia de descer, em nome próprio, a níveis profundos de desespero. A não ser quando o faz em tese ou comentário. Vem-nos à memória um poema («Decepção à Regra»), fora deste livro e que talvez ilumine o que queremos dizer: «Sentar-me e / ver os outros passar é o / meu exercício favorito. Entretém. / Não esgota. / É gratuito. Neste meu jogo-do- -não / são os outros que passam / (é aos outros que reservo a tarefa / de passar)» (Luz Última, 2006).

Mostar, na Bósnia, Maria-Theresien-Platz, em Viena, Dublin, na Irlanda, o Jardim do Calém, no Porto, Veneza, em Itália, e toda a profusão de lugares que a poesia deste autor desde sempre palmilha e recenseia, aponta, mais do que uma contradição ou um conflito, uma falta, um descuido próprio da classe (social) e do lugar (geográfico). Algo que se detecta não só nesta poesia, como em boa parte da que hoje se publica em Portugal. João Luís Barreto Guimarães é, dos poetas portugueses vivos, o mais europeu. Leitor-recolector de largo alcance, viajante curioso e disponível, apaixonado, observador imoderado, se lhe podemos apontar iniquamente uma lacuna (a mesma de que padecemos) é a de não ter visto ainda o mundo todo, essa outra parte cujo tamanho e o balanço, antes dos poemas, em vez dos poemas, propõe uma descida, uma nudez e a míngua. Exige, mais que movimento, envolvimento.»

 

CÂNDIDO DE OLIVEIRA MARTINSLimite, Revista de Estudios Portugueses y de la Lusofonía, Vol. 15 - Año 2021. Pp 29-52

Tempo cíclico na poesia de Movimento, de João Luís Barreto Guimarães

«Resumo: A poesia de João Luís Barreto Guimarães no livro Movimento (2020) distingue-se por ser uma escrita centrada na antiquíssima temática do tempo, omnipresente na tradição filosófica e poético-literária. Aqui, o poeta artífice de O Tempo Avança por Sílabas (2019) opera a reescrita e escultura narrativa do poema e do livro a partir da arquitetura dos Dias da Semana, à sombra da simbologia pagã dos astros presentes as designações romanas, que a designação portuguesa apagou. Ao nível da estrutura dramática, o livro estrutura-se em sete dias e com variável dose de humor e melancolia, realçando a inscrição do quotidiano, esta poesia fala-nos de um tempo cíclico e de um movimento contínuo. Cada poema dessa arquitectura pode ser lido como micronarrativa do quotidiano. Significativamente, começa no sábado (Dia de Saturno) e termina na sexta (Dia de Vénus). Afinal, quer a vida quer a Arte são filhas do Tempo (Chronos), não excluindo a noção de tempo oportuno (Kairós).

Palavras-chaveJoão Luís Barreto Guimarães – poesia – tempo – dias da semana – quotidiano – humor. Artigo completo aqui.»

 

ANTÓNIO CARLOS CORTEZJornal de Letras, 30.12.20
A meio de nada

«Num livro que se organiza em função de uma ideia simbólica – os dias são, em Movimento, consagrados a astros, a deuses (“dia de Saturno”, “dia do Sol”, “dia da Lua”, “dia de Marte”, “dia de Mercúrio”, dia de Júpiter”, “dia de Vénus”, eis os títulos de cada uma das secções) -, e com uma rigorosa estruturação matemática (seis poemas para cada uma das sete partes constitutivas do volume, perfazendo 42 poemas), o menos que se pode dizer é ser este um dos livros mais pensados de João Luís Barreto Guimarães (JLBG). Não que os anteriores o não fossem. A sua arte é, na contemporaneidade, das que mais longe leva a lição pessoana da poesia como intelectualização de uma emoção, sem esquecer a romântica conceção da poesia e daquele que a faz – refiro-me a Keats – para quem o poeta era o ser “menos poético que existe”, dado que não teria qualquer identidade, estando, por isso, na eminência de se tornar sempre outra coisa.

Barreto Guimarães continua, de certo modo, a interrogar, de livro para livro, sob o tópico, ou tema, da viagem, de nobre linhagem, o sentido que a poesia pode ter para quem sabe que a poesia é, em si mesma, a viagem absoluta. A sua poética coloca-nos permanentemente em face de um problema: como resgatar, para um tempo sem deuses e sem astros, para uma época de desastres, um qualquer absoluto poético? Longe dos gregos, para quem a natureza era um interfeixe de relações e forças dinâmicas, imerso nos lugares infectos de uma idade ultra-tecnológica, que pode a simples observação através da poesia, reter?

“Ruínas / assim dispostas levam séculos a / conseguir (incêndios / e terramotos mostraram idêntico afã e / rigor na / construção) o lugar de / cada pedra cuidadosamente escolhido / pela regra / do azar […]” (p.13), eis o primeiro poema. Se a natureza perdeu o sentido de força sagrada, se a paisagem – europeia, sobretudo, ou mediterrânica – não pode caucionar já qualquer locus amoenus ou mesmo locus horrendus, se tudo tem agora, enquanto “antologia de pedras”, o toque de uma artificial espontaneidade, o poeta cinge-se a fazer do poema o lugar onde tema e ideia se confrontam. JLBG é agudíssimo na perceção dessa fissura: em face do museológico acabamento de um espaço cultural, em face dos ossos da História, apenas a imaginação pode constituir-se como energia produtiva (“A / gaveta do museu ordena / os ossos anónimos do / esqueleto de Muge. / Para eles a nossa atenção. / É mais o que não sabemos do / que o pouco que sabemos / e o que dizem esses ossos?” (p.15).

Do mesmo modo que se observa a vida em estado de museu, do mesmo modo que se contempla, em vitral, a impassibilidade do mundo e dos objetos, sejam os de arte (pinturas, gravuras, esculturas, livros), sejam propriamente os artefactos e os seus gestos, o poeta pretende ultrapassar a insanável teoria, ou o fecundo teorema: “o pecado não está no / que o mundo figura mas / no olhar de quem vê?” – questão não só de crise da representação, mas de crise instalada no próprio mundo, lugar dos objetos culturais, agora esvaziado de quem possa olhá-lo e dar-lhe um sentido, mesmo se figurado. O mundo, nesta poesia de múltiplas crises (e a do verso é outro aspeto a considerar: versos suspensos, o trabalho subtil dos encavalgamentos, voz escrita em arranques e pausas, num ritmo insidioso), escapa, assim, à sujeição da filosofia. Não é mais o lugar do entendimento, antes o espaço da acusação a AristótelesCatuloHorácio, autoridades para quem, da Poética à poesia erótica e desta ao didatismo da Arte Poética, pensaram o poema como construção de uma voz – de uma identidade.

É ainda esse o tema obsessivo neste Movimento“Que sabia eu então de / dar ou tirar / a vida? Que entendia eu / da dor”, pergunta-se no poema “Inverno”, o que abre a segunda secção. Ir aos antepassados não garante a ansiada paz para aquele que escreve. Mesmo se, em clave irónica, o poeta pode contar histórias ou propor problemas (pensar-se em cada hóstia que um padre terá ingerido, roubar Bíblias e ir contra os mandamentos de Deus, recordar as noites “entre dois domingos”, enunciar o que havia sobre o rio Neretva…), o que se depreende dessa ironia e desse pendor narrativo é que a própria poesia é a encarnação de uma idade em crise, não apenas de um discurso em crise.

Poderia JLBG afirmar como Camões “errei todo o discurso de meus anos”, apostando na polissemia de um termo como “discurso” – percurso de uma voz e caminho outro – que daria sempre a sua poesia com o mesmo ethos: a crise é a do tempo, crise da idade. No magistral poema “A idade surpreeendente” lê-se: “Na manhã do outro dia o mundo / está sempre de volta / desço os degraus e escuto os / lamentos da madeira / (dissolvo uma aspirina num copo de água / esquinado o / copo sente-se logo melhor). Deixo agora que / me tome a / idade surpreendente / essa idade em que os amigos não / resistem à inveja / os inimigos esboçam um / adiado respeito. Saio à rua e reconheço / o mundo / desarrumado (é como / se o Verão tivesse dado uma festa e / o Outono aparecesse / fazendo-se / de convidado). Na idade surpreendente estamos / a meio de nada […]” (p.29).

Movimento não [é], assim, um livro de viagens, ou de burguesas aspirações a um outro tempo ou a um outro espaço. Trata-se, a meu ver, de um volume onde, aliada à vontade narrativa, persiste uma vontade poética, isto é, de fazer do poema, na sua corporeidade, a viagem mesma de uma linguagem que, como olhar atento, fosse a única realidade por onde viajar é possível. Em “Café Exílio”, “A Grade”, ou “Segunda-feira outra vez”, por exemplo (mas outros poemas comprovam isso também), o verso cortado, o incipit constituído por um só artigo definido de abertura, ou por um verbo, outras vezes por expressões orais, eis o que, quase como substrato e marca de água do estilo de João Luís Barreto Guimarães, acaba por originar essa “luz de ternura” que molda os seres e as coisas desta poesia. Releia-se o fim de “O ralo”. Por detrás do gesto banal, que temos? “Uma tristeza infecciosa / este vazio amargo / isso a que / chamam presente / (quero eu dizer:) / passado” (p.37), súbita epifania – que a criativa pontuação agudiza, bloqueando a explicação que os dois pontos supõem, fechado o parêntesis – da própria existência que, classicamente, as cigarras cantam “sobre ruínas”, depois de muito se ter esperado uma história reescrita.»

 

LUÍS RICARDO DUARTEJornal de Letras, 30.12.20
Vida, movimento e poesia

«Presta culto a dois deuses, a Dionísio, de quem retira inspiração, e a Apolo, que o acompanha na arte de esculpir o poema. São também as duas faces da sua existência, medida pelo rigor da cirurgia [reconstrutiva], que exerce no [Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho], e pela liberdade da linguagem que empresta a um percurso literário de já 30 anos e que agora foi distinguido com o Prémio Armando Silva Carvalho, atribuído a Nómada. Em Movimento, volume de poemas agora editado, volta a afirmar a singularidade do seu universo, neste caso moldado ainda por outros deuses.

Está há muito afastado de um dos centros da sua poesia: as mesas dos cafés do Porto, onde costuma passar horas à volta de um papel e de uma caneta, de um poema e de uma ideia, a refazer o já escrito, [por] vezes na companhia de bons amigos, como o poeta e médico, dois ofícios que os unem, Jorge Sousa Braga, com quem também partilha o gosto pela descoberta de novos autores. João Luís Barreto Guimarães confessa-se, por isso, meio melancólico, debaixo de uma nuvem geral que ofusca pensamentos e antigos prazeres. Só não está surpreendido.

O seu mais recente livro chama-se Movimento, e é lançado numa altura em que dele mais estamos privados. Mesmo sabendo que o tinha pronto muito antes da pandemia nos virar a vida do avesso, não é caso, garante, para voltar a celebrar o valor das coincidências. Que toda a literatura é profética, ninguém duvida, e talvez a poesia seja ainda mais capaz, e mais rapidamente, de captar o ar do tempo, o que só a intuição compreende. Vivemos tempos de mutações, alterações, transformações, e a sua poesia também se confronta com isso, tal como com as mudanças que o poeta sente no seu amadurecimento.

Em Movimento, celebra-se, assim, o estar vivo, o que, por outras palavras, é dizer que só se move o que é pleno de vida. Associando lugar e tempo, dois eixos do seu fazer poético, revisita a cadência cíclica da semana em poemas que falam de si, de espaços, de memórias, mas também de política, de raivas e de deuses.

Nascido em 1967, João Luís Barreto Guimarães publicou o seu primeiro livro de poesia em 1989, Há Violinos na Tribo. Foi o início de um percurso que conta já com dezena e meia de títulos, incluindo duas poesias reunidas e uma antologia, e que privilegia o diálogo com outros autores, que não hesita em citar. “A poesia aprende-se com poetas”, garante. “E o poema com o poema”. Com Movimento prossegue também o seu combate literário, que o faz perseguir uma certa ideia de originalidade, numa tentativa de superar sempre o livro anterior.»   Entrevista aqui.

 

CARLOS FIOLHAISPúblico, 3.12.20
Confinar com os livros

«(...) João Luís Barreto GuimarãesMovimento (Quetzal): o médico portuense reafirma-se como uma das vozes mais originais da moderna poesia portuguesa, num livro dividido nos sete dias da semana (...)»

 

VICENTE ARAGUAS, Diario de Ferrol/Nordésia, 15.11.20
Poesía em movimento

«Centro do momento intenso que vive a poesía portuguesa, nomeadamente no aspecto feminino da cuestión (falo con coñecemento de causa, como prologuista e traductor de “Sombras de porcelana brava”, dazasate poetas lusas, de 1956 a 1987, de Maria Quintans a Sara F. Costa), hai un autor que, coido, merece atención singular, João Luís Barreto Guimarães. Un médico, profesión, a galénica, á que literatura nunca foi allea; entre nós, o gran Castelao ou García Sabell, no ámbito español, BarojaMarañónMartín Santos, como mostras da non incompatibilidade entre ambos choios. E está moi ben que non sexan (sexamos) soamente os profes o cerne da escrita. Daquela Barreto non soamente ocupa traballos e días á medicina senón que tamén escribe. Escribe e viaxa, e fai das súas andainas tema literario. Xa o fixo en libros anteriores, e con Mediterranêo, traducido a varios idomas, en España pola prestixiosa editorial Vaso Roto, Barreto probara esa vocación cosmopolita e escritora que, contra Ciro Alegría, sostén que o mundo, aínda sendo ancho, non é absoluto alleo, para este poeta de Porto (de 1967). Ora, enténdase ben, non e este poeta dos que escriben “in situ”, moito menos “aquí e agora”. O seu é unha reflexión de vóo altivo. Un voar no que, ben pode ser, a partir dun pretexto ocasional (exemplo, a estatua que en Florencia, na Piazza della Signoria, ¡como a boto de menos, na madrigueira pandémica!, substitúe o “David” orixinal na Galleria dell ́Accademia). Mais o que en poeta máis chafulleiro ou viaxeiro pouco “viaxado” non pasaría de postal é, neste caso, tratado de dilucidación entre tema e idea. Outra cousa, claro. Unha poética, a deste libro, que percorrendo os días da semana é moito máis que un dietario. Non é un diario “ad usum” o que se deixa ver, con palabra concentrada, e concepto ao límite por ecómicamente expresivo, senón un pozo de coñecemento: aínda que nel aparezan gatos rutinarios ou “tomates caídos na berma da estrada” (nun dos poemas mellores do libro). Un libro que se chama (por iso, o meu título de hoxe), Movimento (Quetzal, Lisboa, 2020). E que na denominación fai toda unha declaración de propósitos. Poemas a se mover, a través dunha lonxitude media. Por máis que, ás veces baixe a fonduras minimas (valla o oxímoro). Que poden ter a miudeza do “Haiku deixado no pára-brisas de um carro”: Entre tu e ela/ prefiro a segunda/ pessoa do singular” ou o minimalismo de “Uma teoría de tudo”: Os buracos negros são/ as narinas de Deus.” Poemas moi breves, estes dous, que me sirven para exemplificar a poesía (en movemento) de Barreto Guimarães, mais tamén como proba do nove de que hai poéticas que nos poucos poden levar ímplicito o moito. Eis o caso.»

 

SÉRGIO ALMEIDAJornal de Notícias, 11.11.2020
Poemas que recusam a miséria dos dias – Novo livro de João Luís Barreto Guimarães é uma apologia da poesia em "Movimento"

«É em torno do 'antecipar (d)a felicidade sobre a miséria dos dias' que João Luís Barreto Guimarães (JLBG) constrói o seu novo volume de poemas, muito provavelmente o mais equilibrado da dezena de títulos que já publicou. Fá-lo em "Movimento", síntese feliz de uma obra que, desde a segunda metade da década de 1980, sempre se mostrou exemplar no modo como consegue colocar em par a acção e a reflexão.

Ciente de que 'em cada dia cabe uma vida inteira', como escreveu Adam ZagajewskiJLBG extrai da contagem anódina de instantes todas as impurezas e rugosidades que retiram sentido à existência, detendo-se nas suas supostas imperfeições ou insignificâncias para louvar o que raramente designamos como tal.

O milagre da vida, mesmo em tempos vistos como sombrios, renova-se em permanência, porque 'na manhã do outro dia o mundo está sempre de volta', como escreve o poeta. Seja 'a tampa de prata do ralo do lavatório', o 'degrau de madeira' que range à nossa passagem ou 'o guarda-chuva preto [que] não conseguiu resistir ao vento fustigador' e 'jaz agora fracturado numa esquina do presente', há um manancial de detalhes que nos escapam de um quotidiano mais rico do que o nosso olhar embaciado apenas entrevê, anestesiado como está pelas pretensas grandiloquências que nos monopolizam a atenção.

Não se circunscreve, todavia, às dialécticas do dia-a-dia a poesia de JLBG, cujo interesse advém também da forma como sabe convocar outros estados de espírito. Na figura do Sr. Lopes - personagem recorrente da sua obra -, por exemplo, o poeta concentra a mesquinhez combinada com a arrogância de quem sabe que 'o nepotismo' e 'o adormecimento moral' são aliados mortíferos que raras vezes encontram o antídoto certo.

Essa construção da culpabilidade (por omissão) das maiorias silenciosas está também presente em 'Os lugares eram fantásticos', um admirável poema em que o autor disserta sobre a instalação da barbárie a partir do ponto de vista de um espectador que assiste a uma execução como se estivesse na ópera, elogiando 'as cadeiras óptimas' e a possibilidade de ver 'tudo ao pormenor'. A sede de sangue das multidões espreita por estes versos em que a vontade de ver 'tudo ao pormenor' só é suplantada pela vontade de assistir à 'justiça a ser reposta'.»

 

CRISTINA NOBREDiário de Leiria, 4.2.2022
João Luís Barreto Guimarães (2020) movimento OU celebrar a possibilidade
A obra poética de Barreto Guimarães tem evoluído numa linha contínua de reconhecimento em Portugal e no estrangeiro

João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) é poeta, tradutor e médico. O seu primeiro título, Há Violinos na Tribo, saiu em 1989; depois disso publicou mais 5 livros, na editora Quetzal. Tem vários livros traduzidos e, mais recentemente, alguns prémios que falam por si: Mediterrâneo (2016, prémio António Ramos Rosa); Nómada (2018, prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand); O Tempo Avança por Sílabas (2019, antologia de 100 poemas da sua obra). 

A obra poética de Barreto Guimarães tem evoluído numa linha contínua de reconhecimento em Portugal e no estrangeiro, e no apuramento de uma rara ironia, bem como uma melancolia das coisas simples e quotidianas, de raiz profunda na cultura europeia das mais diversas geografias. Por isso as viagens poéticas são peregrinações pela poesia dos seus contemporâneos e pelas memórias da história, construindo assim uma gramática muito própria. 

Em Movimento, de 2020, celebra a vida inteira que cabe em cada dia (veja-se a epígrafe escolhida para abrir o volume). A obra está dividida, geométrica e rigorosamente (simetria?), em 7 partes, ligadas a planetas ou estrelas, cada uma com 6 poemas, que orientam (‘ocidentam’?) os movimentos do poeta (e os nossos?): dia de Saturno; dia do Sol; dia da Lua; dia de Marte; dia de Mercúrio; dia de Júpiter; dia de Vénus. 

Em 42 poemas é a celebração da possibilidade e da expetativa do que venha a ser real, nesse movimento de promessa que transporta sempre a palavra poética. À PROCURA dos ‘admiráveis / poemas’ (opus cit., p. 18 in ‘Aristóteles dizia:’) que sobram das rasuras e limpezas dos excessos poéticos, da solidão da avó (‘As noites entre dois domingos’, p. 24), da esperança renascida nos lugares da guerra (‘Domingo de Páscoa em Mostar’, p. 25), da presença divina na escuridão do mundo (‘Os buracos negros são / as narinas de Deus.’, p. 26 in ‘Uma teoria de tudo’); das perguntas sem resposta (p. 32), ao interminável trabalho de criação poética (‘Não deves / baixar a guarda. Nunca podes / descansar. […] Então não / tens outro arbítrio do que arrepiar as mangas / (encher o punho de tinta) e / disparar a matar.’, p. 34 in ‘Segunda-feira outra vez’); do ralo que suga a espuma dos dias (p. 37), dos domadores ardilosos no circo de Portugal (p. 39), do poder no mercado da patranha (p. 41), do reconhecimento da cólera quotidiana (‘Instruções para engolir a fúria’, p. 42); do regressar ao poema da véspera (p. 45), da homenagem a Manuel António Pina (‘[…] Não o fui ver ao hospital. Talvez / o quisesse ter para sempre / nesta alegria. Às vezes sei ser / tão cobarde.’, p. 46), da imperfeição do amor (pp. 48-9), do indelével da maior parte das tantas perguntas inquietantes (‘[…] Retiras a crosta à ferida / para manter a / dor acesa? […]’, p. 51); do humano desejo de felicidade (‘[…] Antecipa a felicidade sobre / a miséria dos dias / pensar a possibilidade é / ver um umbigo / em Adão.’, p. 55), do eco da razão (‘Elogio ao silêncio’, p. 56), do cuidado com e ante a violência (pp. 57-9), do desespero da aceitação (pp. 60-1); do sentido inexplicável do jogo dos dias (pp. 65-7), das recordações da beleza dos instantes (pp. 68-70), até ao final sentimento de derrota (‘Não vai dar tempo para tudo’, p. 71; ‘Hotéis decadentes que atendem no Inverno’, p. 72). 

O movimento deste revelador livro, mostra-nos, com delicadeza, o que o leitor suspeita e teme ver registado: ‘[…] No final apenas tocamos as / margens do / que é importante […]’ (p. 71). Nesse museu é fundamental ver o quadro com mais atenção do que a nota – só assim se pode celebrar a possibilidade da vida.” 

 

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