43 poemas
(Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 2018-2020)
1ª edição, Quetzal, Lisboa, 2020, esg.
capa e fotografia de Rui Cartaxo Rodrigues
direcção literária de Francisco José Viegas
2ª edição, Quetzal, Lisboa, 2023
3ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa
Grande Prémio de Literatura dst 2022
§
GRANDE PRÉMIO DE LITERATURA dst, Braga, 9.5.22
(Declaração do júri Vitor Manuel de Aguiar e Silva, José Manuel Mendes,
Carlos Mendes de Sousa)
«(...) pelos méritos incomuns na dicção
e estrutura poéticas, marcadas por um sentido de rigor, concisão e
problematização do quotidiano que assumem, no contexto em que se insere, um
conjugar próprio de tradições decantadas até à singularidade merecedora da
escolha efetuada.»
MIGUEL MANSO, Colóquio/Letras, n.º 210, Maio de 2022
MOVIMENTO
«Movimento, publicado, com ironia não premeditada, no
início de um evento pandémico que obrigou a pausar gestos e deslocações a uma
escala global, respeita uma coreografia dançada pelo autor em trabalhos
anteriores. A previsibilidade não deve ser entendida de forma depreciativa ou
redutora. Poderá, antes, ser suposta como variação de posições de um corpo em
relação a um mesmo referencial, ou como a fixa e distintiva trajectória que
cumprem os corpos celestes. Definições que são, de resto, mais concordantes com
aquilo a que aludem o título e as partes: dia de Saturno; dia do Sol; dia da
Lua; dia de Marte; dia de Mercúrio; dia de Júpiter; dia de Vénus. Um leitor
distraído ou menos ilustrado poderá questionar-se sobre a escala para onde cada
um desses capítulos aponta, se o que sobretudo se destapa neles é um composto
de pequenas, quotidianas e antropocêntricas locomoções, a que se poderão
atribuir grandezas opositivas e entrechocadas: «Retiro a tampa de prata do
/ ralo do lavatório e por instantes parece / que o ralo aspira tudo / (a barba
na loiça branca / uma semana / feita em espuma)» (37) ou: «Os buracos negros são / as narinas de Deus» (26).
Desta semana planetária, concebida pelos antigos, derivam, afinal,
os nomes por que são conhecidos os dias na maioria dos idiomas. O nosso figura
do lado das excepções e é o único, entre as línguas românicas, que adoptou um
sistema numeral alheio à mecânica celeste e ao perfil psicológico dos deuses a
ela associados. Restaurado o sistema pagão original, o autor instaura um
tensiómetro através do qual agrupa os textos segundo têmpera e voltagem. Esse
tensiómetro é a lente, o guião e a régua sob os quais corre a energia. Como
todo o calendário, também este transporta no seu lastro a ideia de
circularidade que molda uma dramaturgia. O autor locomove, em segunda
mão, o que a vida — imparável, caótica e indomada — lhe entrega com o nome de
ocorrências. Sinaliza, assim, o que lhe interessa (e é vário o acervo
temático), captura, acomoda, transfaz e devolve à correnteza. Esta é a
proposição de Movimento.
A poesia de João Luís Barreto Guimarães vem, desde
os primeiros livros publicados, entrelaçando tudo o que lhe possa conferir
estrutura e ânimo. Daí resulta o ponderoso detalhe de muitos destes textos
deflagrarem dentro da sua forma, precisarem dela para acender na ideia. Tal
acontece, por exemplo, quando se usa a cesura do verso para o re-significar: «o avô alinha os netos
por alturas / do Natal» (32). Também
quando se opera perto dos domínios de alguma poesia visual: «A / cada ano /
que passa cai uma letra da placa que exigia / ‘Si ê io’»
(56). Os poemas resolvem-se, assim, operando tanto no sólito teatro das alusões
como no insólito campo das ilusões (de óptica) e dos contrastes. São, tantas
vezes, poemas para olhar e experimentar, promovem na leitura momentos de
indecisão e escolha, o que é próprio de uma poesia que vai a jogo, ainda que o
faça, como esta, dentro dos limites da tradição a que pertence e com a qual tão
bem dialoga. É certo que este mecanismo vem sendo maturado e já não tem a
exuberância primitiva dos primeiros trabalhos, em que o elemento lúdico se
confundia com o próprio conceito geral da obra e cada texto escondia nele a sua
própria solução (Este Lado para Cima,
1991).
O pendor humorístico
desta poesia não resulta, o mais das vezes, do simples recurso à piada — embora
esta surja diluída aqui e ali em anotações divertidas, como são as que compõem
o último poema do livro, intitulado «Agradecimentos»: «Aos trombos / das minhas
veias / por recusarem ser êmbolos. / Às amêijoas do Algarve / em especial às /
que abriram» (77) —, depende, sim, do
embutimento dos temas na forma, das mínimas emboscadas no trajecto da leitura,
das subversões à regra, dos jogos de palavras, das observações surpreendentes e
de uma curiosa e inexplicada habilidade em produzir (pelo menos com este
leitor) sincronicidades. A maioria delas ocorrerá regida pelas leis do acaso,
por exemplo, ler estes poemas num café (espaço de eleição para o poeta, que
declarou gostar aí de trabalhar, e ao qual se refere amiúde) e a porta desse
café em que se está lendo ser aberta ao mesmo tempo que a porta no café do
poema, e sentir-se o mesmo, por indução: «Por vezes entra da rua / uma
brisa fugaz tal / o feixe de um farol rodando uma esperança de luz» (31). Outras vezes, essa tendência para
activar o acontecimento síncrono poderá ser conscientemente manipulada: «o
rosto prometido ao sol / como liquidâmbares a arder (ao espelho / um do outro
como quem sublinha versos / ou dobra cantos aos livros / ou dá de beber tinta /
ao papel)» (68).
Interessaria apontar
também, na escrita de João Luís Barreto
Guimarães, uma disponibilidade para reconhecer como matéria da poesia
aquilo que poderemos declarar como supérfluo, incompleto, destruído: «Ruínas / assim dispostas
levam séculos a / conseguir» (13). Essa
busca pelo referente inusitado, o pormenor obliterado, o acontecimento perdido
no tempo que é «arquitecto do
acaso» (13) confere ao eu lírico uma
inclinação para a ubiquidade, que afinal só não cumpre por pudor ou por saber
que lhe basta exercer o gesto da enunciação, de apontar um caminho, uma
paisagem, uma inexistência, até, para que o leitor pondere hipóteses menos
frequentadas: «Malgrado não tenha ocorrido ainda / celebra a /
possibilidade» (55) ou: «em que lugar
da Roma Antiga / estão perdidas as palavras (versos / estrofes inteiras) que
Catulo / ou Horácio / libertaram dos poemas?»
(18).
Continuando a sublinhar
este ponto, gostaríamos ainda de razoar sobre as noções de retirada, de espaço
em branco, de vestígio, de anonimato, que o autor (per)segue tratando como objectos do maior interesse. Os ossos de um cão do
período mesolítico, que levantam todas as suposições — «é [sempre] mais o
que não sabemos» (15) — e estas erguendo,
por sua vez, o poema que lhes é dedicado; um utensílio humano, talhado na idade
da pedra e que promove uma longa observação silenciosa, depois interrompida por
outro objecto que vibra no bolso, a milhares de anos dali; esse gesto «frio
/ áspero / profundo» (21) com que um avô
subtraía a vida a animais atados pelas patas, e de como eles partiam «em pouco mais que / minutos» (ibid.). De acumuladas ausências, também,
se fazem estes poemas. E deste cúmulo, que se reconhece desarrumado, sem valor,
«como moedas que sobram de viagens ao estrangeiro» (29), resulta a sua mais-valia.
Marte, nesta tessitura,
determina o momento em que se pode esboçar, ao de leve, o gesto beligerante,
promessa que vinha anunciada desde o dia anterior (o da Lua): «(encher o punho de
tinta) e / disparar a matar» (34). Um
disparo, afinal, académico, confirmado pelo recurso a uns tomates caídos numa
estrada do Sul, «nódoas [possíveis] de um assassinato» (38). Em Marte, também, conjuga-se de longe a gramática do capital e
da injustiça e vai-se engolindo a fúria: «Instruções para engolir a fúria» (42). Para logo recomeçar noutro sítio
(noutro dia) e toda a violência adumbrada desembocar numa «cauda do / lápis
roída» (45).
Os momentos solares
entremeiam com outros, toldados por uma fina melancolia que, de resto, nunca
escurece de forma desgovernada. Há uma rede de segurança, tecida pelo intelecto
e o spleen, que previne esta poesia de
descer, em nome próprio, a níveis profundos de desespero. A não ser quando o
faz em tese ou comentário. Vem-nos à memória um poema («Decepção à Regra»), fora deste livro e que talvez ilumine o
que queremos dizer: «Sentar-me e / ver os outros passar é o / meu exercício
favorito. Entretém. / Não esgota. / É gratuito. Neste meu jogo-do- -não / são
os outros que passam / (é aos outros que reservo a tarefa / de passar)» (Luz Última, 2006).
Mostar, na Bósnia,
Maria-Theresien-Platz, em Viena, Dublin, na Irlanda, o Jardim do Calém, no
Porto, Veneza, em Itália, e toda a profusão de lugares que a poesia deste autor
desde sempre palmilha e recenseia, aponta, mais do que uma contradição ou um
conflito, uma falta, um descuido próprio da classe (social) e do lugar
(geográfico). Algo que se detecta não só nesta poesia, como em boa parte da que
hoje se publica em Portugal. João Luís
Barreto Guimarães é, dos poetas portugueses vivos, o mais europeu.
Leitor-recolector de largo alcance, viajante curioso e disponível, apaixonado,
observador imoderado, se lhe podemos apontar iniquamente uma lacuna (a mesma de
que padecemos) é a de não ter visto ainda o mundo todo, essa outra parte cujo
tamanho e o balanço, antes dos poemas, em vez dos poemas, propõe uma descida,
uma nudez e a míngua. Exige, mais que movimento, envolvimento.»
CÂNDIDO DE OLIVEIRA MARTINS, Limite, Revista de Estudios Portugueses y de la Lusofonía, Vol. 15 - Año 2021. Pp 29-52
Tempo cíclico na poesia de Movimento, de
João Luís Barreto Guimarães
«Resumo: A poesia de João Luís
Barreto Guimarães no livro Movimento (2020) distingue-se por ser uma
escrita centrada na antiquíssima temática do tempo, omnipresente na tradição
filosófica e poético-literária. Aqui, o poeta artífice de O Tempo Avança por
Sílabas (2019) opera a reescrita e escultura narrativa do poema e do livro a
partir da arquitetura dos Dias da Semana, à sombra da simbologia pagã dos
astros presentes as designações romanas, que a designação portuguesa apagou. Ao
nível da estrutura dramática, o livro estrutura-se em sete dias e com variável
dose de humor e melancolia, realçando a inscrição do quotidiano, esta poesia
fala-nos de um tempo cíclico e de um movimento contínuo. Cada poema dessa
arquitectura pode ser lido como micronarrativa do quotidiano.
Significativamente, começa no sábado (Dia de Saturno) e termina na sexta (Dia
de Vénus). Afinal, quer a vida quer a Arte são filhas do Tempo (Chronos), não
excluindo a noção de tempo oportuno (Kairós).
Palavras-chave: João Luís
Barreto Guimarães – poesia – tempo – dias da semana – quotidiano –
humor. Artigo completo aqui.»
« (...) Este livro de João Luís Barreto Guimarães poderia chamar-se simplesmente Tempo ou Tempo Cíclico, tal a inquestionável centralidade do tema, mas a escolha de Movimento está indissoluvelmente ligada à ideia de Tempo, nos seus diversos significados. Como referido brevemente no início, há uma riquíssima tradição filosófico-literária que está subentendida nesta proposta de visão do Tempo. Desta leitura do livro Movimento de João Luís Barreto Guimarães podem inferir-se algumas ideias, com destaque para as seguintes:
(1) Esta poesia não ignora, antes assume, directa ou indirectamente, uma riquíssima herança filosófica, cultural e literária em torno da questão axial do Tempo, que atravessa todo o pensamento e criação ocidental, desde a Antiguidade grega e latina, como uma das grandes indagações que se coloca à própria condição humana. É nesta assunção que se podem ler as referências dispersas, ora expressas ora implícitas, a autores, obras e ideias, num rico intertexto de remissões e diálogos. O poeta não faz disso um exercício de erudição retórica, mas antes incorpora esses processos dialógicos (citações, referências, alusões) na tessitura significante dos poemas.
(2) Tal como para outros livros, também este nasceu de um gatilho ou circunstância quotidiana – uma visita à Sé de Braga e o encontro com a figura de S. Martinho de Dume, cuja obra e acção estão ligadas à ideia de cristianização dos dias da semana, contrariando a herança pagã ainda presente em outras línguas europeias. O processo de gestação de um livro é sempre paulatino, em que os textos vão ganhando a sua unidade, mas pode haver uma situação inesperada que funciona como ideia aglutinadora. Por outras palavras, a ideia dos dias da semana funciona aqui como uma epifania do movimento da vida, para ilustrar a ideia de como o tempo avança ciclicamente.
(3) Os poemas e a ideia estrutural deste livro Movimento constroem-se em torno da linha temática do Tempo. São por demais evidentes as imagens, metáforas e recorrências verbais que enfatizam a centralidade da presença activa e fecunda do Tempo, nas suas várias dimensões – tempo duração, tempo memória, tempo cíclico. Aliás, numa leitura global da escrita de João Luís Barreto Guimarães – que ultrapassa o desiderato deste texto –, pode afirmar-se que o Tempo é um dos maiores denominadores comuns da sua poesia. Podem é variar os procedimentos e as imagens para dizer o Tempo. A corporeidade do poema e a sua linguagem são necessariamente moldados pelo tempo.
(4) Os textos de Movimento, agrupados segundo os sete dias da semana, mas na sua matriz pagã, exploram os significados e simbolismo dessas ancestrais e míticas figuras, ainda que de forma nem sempre Muito visível. Aliás, isso permite ao poeta uma certa ordenação das coisas ao longo dos vários dias, a começar no sábado (Dia de Saturno) e a acabar na sexta (Dia de Vénus). Pode-se talvez propor que há mesmo uma ideia de narrativa a organizar estes poemas, no conjunto das sete secções. Por exemplo, de acordo com o simbolismo referido, nos dois primeiros dias (Sábado e Domingo), o foco vai para aquilo que é bom e agradável ao ser humano – Arte, Cultura, elogio da vida, vida contemplativa, etc. E isso vai variando consoante a simbólica matricial dos dias, numa diversa pintura do tempo.
(5) Por fim, os poemas de Movimento não escondem uma certa vocação narrativa, na medida em que vários deles podem ser lidos como micro-narrativas do quotidiano, com sua encenação teatral, integrando o mosaico da referida estrutura maior. E não é difícil encontrarmos poemas de índole mais introdutória e outros de natureza mais conclusiva; e todos concorrendo para a tal organização geral em torno da imagem do movimento temporal como tempo cíclico. Também aqui se pode dizer que o todo macro-estrutural deve ser melhor e mais significante que as partes isoladamente. Tudo isto confirma a ideia de estarmos perante um livro bem arquitectado e maduramente pensado. »
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ, Jornal de Letras, 30.12.20
A meio de nada
«Num
livro que se organiza em função de uma ideia simbólica – os dias são, em Movimento,
consagrados a astros, a deuses (“dia de Saturno”, “dia do Sol”, “dia da
Lua”, “dia de Marte”, “dia de Mercúrio”, dia de Júpiter”, “dia de Vénus”,
eis os títulos de cada uma das secções) -, e com uma rigorosa estruturação
matemática (seis poemas para cada uma das sete partes constitutivas do volume,
perfazendo 42 poemas), o menos que se pode dizer é ser este um dos livros mais
pensados de João Luís Barreto Guimarães (JLBG). Não que
os anteriores o não fossem. A sua arte é, na contemporaneidade, das que mais
longe leva a lição pessoana da poesia como intelectualização de uma emoção, sem
esquecer a romântica conceção da poesia e daquele que a faz – refiro-me a Keats –
para quem o poeta era o ser “menos poético que existe”, dado que não
teria qualquer identidade, estando, por isso, na eminência de se tornar sempre
outra coisa.
Barreto Guimarães continua, de certo
modo, a interrogar, de livro para livro, sob o tópico, ou tema, da viagem, de
nobre linhagem, o sentido que a poesia pode ter para quem sabe que a poesia é,
em si mesma, a viagem absoluta. A sua poética coloca-nos permanentemente em
face de um problema: como resgatar, para um tempo sem deuses e sem astros, para
uma época de desastres, um qualquer absoluto poético? Longe dos gregos, para
quem a natureza era um interfeixe de relações e forças dinâmicas, imerso nos lugares
infectos de uma idade ultra-tecnológica, que pode a simples observação através
da poesia, reter?
“Ruínas / assim dispostas levam séculos
a / conseguir (incêndios / e terramotos mostraram idêntico afã e / rigor na /
construção) o lugar de / cada pedra cuidadosamente escolhido / pela regra / do
azar […]” (p.13), eis o primeiro poema. Se a natureza perdeu o sentido
de força sagrada, se a paisagem – europeia, sobretudo, ou mediterrânica – não
pode caucionar já qualquer locus amoenus ou mesmo locus
horrendus, se tudo tem agora, enquanto “antologia de pedras”, o toque
de uma artificial espontaneidade, o poeta cinge-se a fazer do poema o lugar
onde tema e ideia se confrontam. JLBG é agudíssimo na perceção
dessa fissura: em face do museológico acabamento de um espaço cultural, em face
dos ossos da História, apenas a imaginação pode constituir-se como energia
produtiva (“A / gaveta do museu ordena / os ossos anónimos do / esqueleto
de Muge. / Para eles a nossa atenção. / É mais o que não sabemos do / que o
pouco que sabemos / e o que dizem esses ossos?” (p.15).
Do mesmo modo que se observa a vida em
estado de museu, do mesmo modo que se contempla, em vitral, a impassibilidade
do mundo e dos objetos, sejam os de arte (pinturas, gravuras, esculturas,
livros), sejam propriamente os artefactos e os seus gestos, o poeta pretende
ultrapassar a insanável teoria, ou o fecundo teorema: “o pecado não está no
/ que o mundo figura mas / no olhar de quem vê?” – questão não só de
crise da representação, mas de crise instalada no próprio mundo, lugar dos
objetos culturais, agora esvaziado de quem possa olhá-lo e dar-lhe um sentido,
mesmo se figurado. O mundo, nesta poesia de múltiplas crises (e a do verso é
outro aspeto a considerar: versos suspensos, o trabalho subtil dos encavalgamentos,
voz escrita em arranques e pausas, num ritmo insidioso), escapa, assim, à
sujeição da filosofia. Não é mais o lugar do entendimento, antes o espaço da
acusação a Aristóteles, Catulo, Horácio,
autoridades para quem, da Poética à poesia erótica e desta ao didatismo da Arte
Poética, pensaram o poema como construção de uma voz – de uma identidade.
É ainda esse o tema obsessivo
neste Movimento: “Que sabia eu então de / dar ou tirar / a vida? Que
entendia eu / da dor”, pergunta-se no poema “Inverno”, o que
abre a segunda secção. Ir aos antepassados não garante a ansiada paz para
aquele que escreve. Mesmo se, em clave irónica, o poeta pode contar histórias
ou propor problemas (pensar-se em cada hóstia que um padre terá ingerido,
roubar Bíblias e ir contra os mandamentos de Deus, recordar as noites “entre
dois domingos”, enunciar o que havia sobre o rio Neretva…), o que se
depreende dessa ironia e desse pendor narrativo é que a própria poesia é a
encarnação de uma idade em crise, não apenas de um discurso em crise.
Poderia JLBG afirmar
como Camões “errei todo o discurso de meus anos”,
apostando na polissemia de um termo como “discurso” – percurso
de uma voz e caminho outro – que daria sempre a sua poesia com o mesmo ethos:
a crise é a do tempo, crise da idade. No magistral poema “A idade
surpreeendente” lê-se: “Na manhã do outro dia o mundo / está
sempre de volta / desço os degraus e escuto os / lamentos da madeira /
(dissolvo uma aspirina num copo de água / esquinado o / copo sente-se logo
melhor). Deixo agora que / me tome a / idade surpreendente / essa idade em que
os amigos não / resistem à inveja / os inimigos esboçam um / adiado respeito.
Saio à rua e reconheço / o mundo / desarrumado (é como / se o Verão tivesse
dado uma festa e / o Outono aparecesse / fazendo-se / de convidado). Na idade
surpreendente estamos / a meio de nada […]” (p.29).
Movimento não [é], assim, um
livro de viagens, ou de burguesas aspirações a um outro tempo ou a um outro
espaço. Trata-se, a meu ver, de um volume onde, aliada à vontade narrativa,
persiste uma vontade poética, isto é, de fazer do poema, na sua corporeidade, a
viagem mesma de uma linguagem que, como olhar atento, fosse a única realidade
por onde viajar é possível. Em “Café Exílio”, “A Grade”, ou “Segunda-feira
outra vez”, por exemplo (mas outros poemas comprovam isso também), o verso
cortado, o incipit constituído por um só artigo definido de
abertura, ou por um verbo, outras vezes por expressões orais, eis o que, quase
como substrato e marca de água do estilo de João Luís Barreto Guimarães,
acaba por originar essa “luz de ternura” que molda os seres e
as coisas desta poesia. Releia-se o fim de “O ralo”. Por detrás do
gesto banal, que temos? “Uma tristeza infecciosa / este vazio amargo /
isso a que / chamam presente / (quero eu dizer:) / passado” (p.37),
súbita epifania – que a criativa pontuação agudiza, bloqueando a explicação que
os dois pontos supõem, fechado o parêntesis – da própria existência que,
classicamente, as cigarras cantam “sobre ruínas”, depois de muito se
ter esperado uma história reescrita.»
LUÍS RICARDO DUARTE, Jornal de Letras, 30.12.20
Vida, movimento e poesia
«Presta
culto a dois deuses, a Dionísio, de quem retira inspiração, e
a Apolo, que o acompanha na arte de esculpir o poema. São também as
duas faces da sua existência, medida pelo rigor da cirurgia [reconstrutiva],
que exerce no [Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho], e pela liberdade
da linguagem que empresta a um percurso literário de já 30 anos e que agora foi
distinguido com o Prémio Armando Silva Carvalho, atribuído a Nómada.
Em Movimento, volume de poemas agora editado, volta a afirmar a
singularidade do seu universo, neste caso moldado ainda por outros deuses.
Está há muito afastado de um dos centros
da sua poesia: as mesas dos cafés do Porto, onde costuma passar horas à volta
de um papel e de uma caneta, de um poema e de uma ideia, a refazer o já
escrito, [por] vezes na companhia de bons amigos, como o poeta e médico, dois
ofícios que os unem, Jorge Sousa Braga, com quem também partilha o
gosto pela descoberta de novos autores. João Luís Barreto
Guimarães confessa-se, por isso, meio melancólico, debaixo de uma
nuvem geral que ofusca pensamentos e antigos prazeres. Só não está
surpreendido.
O seu mais recente livro chama-se Movimento, e é
lançado numa altura em que dele mais estamos privados. Mesmo sabendo que o
tinha pronto muito antes da pandemia nos virar a vida do avesso, não é caso,
garante, para voltar a celebrar o valor das coincidências. Que toda a
literatura é profética, ninguém duvida, e talvez a poesia seja ainda mais
capaz, e mais rapidamente, de captar o ar do tempo, o que só a intuição
compreende. Vivemos tempos de mutações, alterações, transformações, e a sua
poesia também se confronta com isso, tal como com as mudanças que o poeta sente
no seu amadurecimento.
Em Movimento,
celebra-se, assim, o estar vivo, o que, por outras palavras, é dizer que só se
move o que é pleno de vida. Associando lugar e tempo, dois eixos do seu fazer
poético, revisita a cadência cíclica da semana em poemas que falam de si, de
espaços, de memórias, mas também de política, de raivas e de deuses.
Nascido em 1967, João Luís
Barreto Guimarães publicou o seu primeiro livro de poesia em
1989, Há Violinos na Tribo. Foi o início de um percurso que conta já com
dezena e meia de títulos, incluindo duas poesias reunidas e uma antologia, e
que privilegia o diálogo com outros autores, que não hesita em citar. “A
poesia aprende-se com poetas”, garante. “E o poema com o poema”.
Com Movimento prossegue também o seu combate literário, que o
faz perseguir uma certa ideia de originalidade, numa tentativa de superar
sempre o livro anterior.» Entrevista aqui.
CARLOS FIOLHAIS, Público,
3.12.20
Confinar com os livros
«(...) João
Luís Barreto Guimarães, Movimento (Quetzal):
o médico portuense reafirma-se como uma das vozes mais originais da moderna
poesia portuguesa, num livro dividido nos sete dias da semana (...)»
VICENTE ARAGUAS, Diario de
Ferrol/Nordésia, 15.11.20
Poesía em movimento
«Centro
do momento intenso que vive a poesía portuguesa, nomeadamente no aspecto
feminino da cuestión (falo con coñecemento de causa, como prologuista e
traductor de “Sombras de porcelana brava”,
dazasate poetas lusas, de 1956 a 1987, de Maria Quintans a Sara
F. Costa), hai un autor que, coido, merece atención singular, João
Luís Barreto Guimarães. Un médico, profesión, a galénica, á que literatura
nunca foi allea; entre nós, o gran Castelao ou García
Sabell, no ámbito español, Baroja, Marañón, Martín
Santos, como mostras da non incompatibilidade entre ambos choios. E está
moi ben que non sexan (sexamos) soamente os profes o cerne da escrita.
Daquela Barreto non soamente ocupa traballos e días á medicina
senón que tamén escribe. Escribe e viaxa, e fai das súas andainas tema
literario. Xa o fixo en libros anteriores, e con Mediterranêo,
traducido a varios idomas, en España pola prestixiosa editorial Vaso
Roto, Barreto probara esa vocación cosmopolita e escritora
que, contra Ciro Alegría, sostén que o mundo, aínda sendo ancho,
non é absoluto alleo, para este poeta de Porto (de 1967). Ora, enténdase ben,
non e este poeta dos que escriben “in situ”, moito menos “aquí
e agora”. O seu é unha reflexión de vóo altivo. Un voar no que, ben pode
ser, a partir dun pretexto ocasional (exemplo, a estatua que en Florencia, na
Piazza della Signoria, ¡como a boto de menos, na madrigueira
pandémica!, substitúe o “David” orixinal na Galleria dell
́Accademia). Mais o que en poeta máis chafulleiro ou viaxeiro pouco “viaxado” non
pasaría de postal é, neste caso, tratado de dilucidación entre tema e idea. Outra
cousa, claro. Unha poética, a deste libro, que percorrendo os días da semana é
moito máis que un dietario. Non é un diario “ad usum” o que se
deixa ver, con palabra concentrada, e concepto ao límite por ecómicamente
expresivo, senón un pozo de coñecemento: aínda que nel aparezan gatos
rutinarios ou “tomates caídos na berma da estrada” (nun dos
poemas mellores do libro). Un libro que se chama (por iso, o meu título de
hoxe), Movimento (Quetzal, Lisboa, 2020). E que na
denominación fai toda unha declaración de propósitos. Poemas a se mover, a
través dunha lonxitude media. Por máis que, ás veces baixe a fonduras minimas
(valla o oxímoro). Que poden ter a miudeza do “Haiku deixado no
pára-brisas de um carro”: Entre tu e ela/ prefiro a segunda/ pessoa do singular” ou
o minimalismo de “Uma teoría de tudo”: Os buracos negros são/ as
narinas de Deus.” Poemas moi breves, estes dous, que me sirven para
exemplificar a poesía (en movemento) de Barreto Guimarães, mais
tamén como proba do nove de que hai poéticas que nos poucos poden levar
ímplicito o moito. Eis o caso.»
SÉRGIO ALMEIDA, Jornal de Notícias, 11.11.2020
Poemas que recusam a miséria dos dias – Novo livro de João
Luís Barreto Guimarães é uma apologia da poesia em "Movimento"
«É em torno do 'antecipar (d)a
felicidade sobre a miséria dos dias' que João Luís Barreto Guimarães (JLBG)
constrói o seu novo volume de poemas, muito provavelmente o mais equilibrado da
dezena de títulos que já publicou. Fá-lo em "Movimento",
síntese feliz de uma obra que, desde a segunda metade da década de 1980, sempre
se mostrou exemplar no modo como consegue colocar em par a acção e a reflexão.
Ciente de que 'em cada dia cabe uma vida
inteira', como escreveu Adam Zagajewski, JLBG extrai
da contagem anódina de instantes todas as impurezas e rugosidades que retiram
sentido à existência, detendo-se nas suas supostas imperfeições ou
insignificâncias para louvar o que raramente designamos como tal.
O milagre da vida, mesmo em tempos
vistos como sombrios, renova-se em permanência, porque 'na manhã do outro dia
o mundo está sempre de volta', como escreve o poeta. Seja 'a tampa de
prata do ralo do lavatório', o 'degrau de madeira' que
range à nossa passagem ou 'o guarda-chuva preto [que] não conseguiu
resistir ao vento fustigador' e 'jaz agora fracturado numa esquina do
presente', há um manancial de detalhes que nos escapam de um quotidiano mais
rico do que o nosso olhar embaciado apenas entrevê, anestesiado como está pelas
pretensas grandiloquências que nos monopolizam a atenção.
Não se circunscreve, todavia, às
dialécticas do dia-a-dia a poesia de JLBG, cujo interesse advém
também da forma como sabe convocar outros estados de espírito. Na figura do Sr.
Lopes - personagem recorrente da sua obra -, por exemplo, o poeta concentra a
mesquinhez combinada com a arrogância de quem sabe que 'o nepotismo' e 'o
adormecimento moral' são aliados mortíferos que raras vezes encontram o
antídoto certo.
Essa construção da culpabilidade (por
omissão) das maiorias silenciosas está também presente em 'Os lugares eram
fantásticos', um admirável poema em que o autor disserta sobre a instalação
da barbárie a partir do ponto de vista de um espectador que assiste a uma
execução como se estivesse na ópera, elogiando 'as cadeiras óptimas' e a
possibilidade de ver 'tudo ao pormenor'. A sede de sangue das multidões
espreita por estes versos em que a vontade de ver 'tudo ao pormenor' só
é suplantada pela vontade de assistir à 'justiça a ser reposta'.»
CRISTINA NOBRE, Diário de Leiria, 4.2.2022
João Luís Barreto Guimarães (2020) movimento OU celebrar a possibilidade
A obra poética de Barreto Guimarães tem evoluído numa linha contínua de
reconhecimento em Portugal e no estrangeiro
“João Luís Barreto Guimarães (n.
1967) é poeta, tradutor e médico. O seu primeiro título, Há Violinos na Tribo,
saiu em 1989; depois disso publicou mais 5 livros, na editora Quetzal. Tem
vários livros traduzidos e, mais recentemente, alguns prémios que falam por
si: Mediterrâneo (2016, prémio António Ramos Rosa); Nómada
(2018, prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand); O Tempo Avança por
Sílabas (2019, antologia de 100 poemas da sua obra).
A obra poética de Barreto
Guimarães tem evoluído numa linha contínua de reconhecimento em
Portugal e no estrangeiro, e no apuramento de uma rara ironia, bem como uma
melancolia das coisas simples e quotidianas, de raiz profunda na cultura
europeia das mais diversas geografias. Por isso as viagens poéticas são
peregrinações pela poesia dos seus contemporâneos e pelas memórias da história,
construindo assim uma gramática muito própria.
Em Movimento, de 2020, celebra a vida
inteira que cabe em cada dia (veja-se a epígrafe escolhida para abrir o
volume). A obra está dividida, geométrica e rigorosamente (simetria?), em 7
partes, ligadas a planetas ou estrelas, cada uma com 6 poemas, que orientam
(‘ocidentam’?) os movimentos do poeta (e os nossos?): dia de Saturno; dia do
Sol; dia da Lua; dia de Marte; dia de Mercúrio; dia de Júpiter; dia de
Vénus.
Em 42 poemas é a celebração da
possibilidade e da expetativa do que venha a ser real, nesse movimento de
promessa que transporta sempre a palavra poética. À PROCURA dos ‘admiráveis /
poemas’ (opus cit., p. 18 in ‘Aristóteles dizia:’) que sobram das rasuras e
limpezas dos excessos poéticos, da solidão da avó (‘As noites entre dois
domingos’, p. 24), da esperança renascida nos lugares da guerra (‘Domingo de
Páscoa em Mostar’, p. 25), da presença divina na escuridão do mundo (‘Os
buracos negros são / as narinas de Deus.’, p. 26 in ‘Uma teoria de tudo’); das
perguntas sem resposta (p. 32), ao interminável trabalho de criação poética (‘Não
deves / baixar a guarda. Nunca podes / descansar. […] Então não / tens outro
arbítrio do que arrepiar as mangas / (encher o punho de tinta) e / disparar a
matar.’, p. 34 in ‘Segunda-feira outra vez’); do ralo que suga a espuma dos
dias (p. 37), dos domadores ardilosos no circo de Portugal (p. 39), do poder no
mercado da patranha (p. 41), do reconhecimento da cólera quotidiana
(‘Instruções para engolir a fúria’, p. 42); do regressar ao poema da véspera
(p. 45), da homenagem a Manuel António Pina (‘[…] Não o fui ver ao hospital.
Talvez / o quisesse ter para sempre / nesta alegria. Às vezes sei ser / tão
cobarde.’, p. 46), da imperfeição do amor (pp. 48-9), do indelével da maior
parte das tantas perguntas inquietantes (‘[…] Retiras a crosta à ferida / para manter
a / dor acesa? […]’, p. 51); do humano desejo de felicidade (‘[…] Antecipa a
felicidade sobre / a miséria dos dias / pensar a possibilidade é / ver um
umbigo / em Adão.’, p. 55), do eco da razão (‘Elogio ao silêncio’, p. 56), do
cuidado com e ante a violência (pp. 57-9), do desespero da aceitação (pp.
60-1); do sentido inexplicável do jogo dos dias (pp. 65-7), das recordações da
beleza dos instantes (pp. 68-70), até ao final sentimento de derrota (‘Não vai
dar tempo para tudo’, p. 71; ‘Hotéis decadentes que atendem no Inverno’, p.
72).
O movimento deste revelador livro, mostra-nos, com delicadeza, o que o leitor suspeita e teme ver registado: ‘[…] No final apenas tocamos as / margens do / que é importante […]’ (p. 71). Nesse museu é fundamental ver o quadro com mais atenção do que a nota – só assim se pode celebrar a possibilidade da vida.”
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