ABERTO TODOS OS DIAS

40 poemas
(Porto, Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 2020-2022) 

1ª edição, Quetzal, Lisboa, Janeiro 2023, esg.

capa de Rui Cartaxo Rodrigues, a partir de Vista de Delft, de Johannes Vermeer
direcção literária de Francisco José Viegas

2ª edição, Quetzal, Lisboa, Janeiro 2023

3ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa, Abril 2023

 

> entrevista TSF

> entrevista Rádio Renascença

> entrevista Antena 1

> encomendar o livro na Bertrandna Wookna Almedina ou na Fnac. 

 

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VICENTE ARAGUAS, La Región, Galiza, 7.4.23

«ABERTO TODOS OS DIAS» DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

«A poesia de João Luís Barreto Guimarães oscila, sempre entre a contemplación da História, a ironia sobre as cousas comuns e cotiás, a transformación dos sentimentos en meditación sobre o paso do  tempo e a construcción dun universo próprio 

Ler a João Luís Barreto Guimarães, poeta portugués de primeira liña, a quen presentei hai anos en Madrid, por mor da publicación dun libro seu en Vaso Roto, é para min asunto prácido que me leva aos límites da ataraxia. E iso sen necesidade de máis beberetes que a poética que practica este autor, polo demais médico, cal o teñen sido outros escritores, por máis que algúns cal o noso Castelao, rexeitaran a práctica galénica por amor á humanidade, seica.

Mais isto é, para o caso, anécdota, que o categórico é que Barreto Guimarães é poeta de fondo (de catálogo, tamén). Deses que debaixo dunha tona sinxela agachan dinamita, coa que furar tuneis polos que chegar á poética elevada. Tan alta, tan alta que con el un pode tomar baños na praia de Moledo, que non resulta para mín en absoluto allea, sentindo case que o vento nas costas, facendo do corpo do lector embarcación. Estamos diante dunha poética non soamente visual mais sensitiva, que ulttrapasa a raia do que se ve para múdalo nun entrañamento total.

Algo semellante ao que acontece coa pintura de Vermeer, e non é causualidade, supoño, que os artífices da moi fermosa edición deste libro, Aberto todos os días, teñan botado man de “Vista de Delft” para abrir un volume que nos fala dunha poética, como de garda, aberta - e o título en absoluto engana - a todas horas. Na que se descubren as cartas dunha baralla non nada trucada, pola que desfilan barcos, garzas, gardachuvas, piscinas do inverno, ou eses veráns como ritos morredeiros, para volver nacer como o fai a poesía deste autor, renacido decote. Eis o don da poesía auténtica, dun dos autores lusos máis chamativos do momento, galardonado neste libro co “Pessoa 2022”, un premio moi competente cal o que supón este poeta da excelencia, que nos mostra xa no comezo do seu manual un devir cotián, con ese “Há unha mo cheia de coisas à espera de acontecer. Tal como agoiro dun futuro que o espírito poético de Barreto Guimarães dá parado. E iso é ou debera a poesía. A deste poeta, que vive no corazón do Alto Minho. Quen de nos transmitir a música calada, de San Juan de la Cruz, entre a realidade e un soño viaxeiro, pero que non se describe “in situ” senón despois de que o silencio se nos faga pouso e paisaxe. Algo así.»

 

CARLOS FIOLHAIS, De Rerum Natura, 24.3.23 (também em As Artes e as Letras)

«ABERTO TODOS OS DIAS» DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

«O livro Aberto todos os dias  (Quetzal) é o mais recente do médico-poeta portuense João Luís Barreto Guimarães, distinguido no final de 2022 com o prémio Pessoa. Confirma o que já se sabia: o autor é um dos mais originais poetas portugueses da actualidade. Os leitores que, levados pela leitura deste livro ou dos outros mais recentes (Mediterrâneo, 2016; Nómada, 2018; e Movimento, 2020, todos do prelo da Quetzal e todos não só premiados como objecto de traduções noutras línguas), queiram conhecer a obra integral de um autor que ensina poesia aos estudantes de Medicina tê-la-ão no volume de poesia reunida a sair muito em breve. O tema maior do seu discurso poético é o tempo. O poeta serve-se de momentos do quotidiano para, usando por vezes fina ironia, falar da condição humana no tempo que corre.

A capa - lindíssima -  do livro é a Vista de Delft do pintor holandês Johannes Vermeer. Pintou um panorama da sua cidade, segundo um físico que estudou o assunto, às 8 h da manhã do dia 3 de Setembro de 1659, deixando-nos uma obra-prima que pode ser vista na Mauritiushuis em Haia (ou, por estes dias, na grande exposição de Vermeer no Rijksmuseum de Amesterdão). Trata-se de um quadro famoso na história da literatura pois o escritor francês Marcel Proust estava apaixonado por ele a ponto de o ter referido num dos volumes (A Fugitiva) de Em busca do tempo perdido. Ele conta aí um episódio autobiográfico: quando foi visitar uma exposição em Paris que exibia o referido quadro com o intuito de observar um pedaço de muro amarelo que lá aparece, sentiu-se indisposto. No romance, o narrador descreve um escritor nessa situação que coloca num dos pratos de uma balança esse bocadinho de muro, magnificamente pintado, e no outro prato toda a sua vida, e a seguir falece repentinamente. Esse pedacinho de muro pode representa os pormenores  da vida que Barreto Guimarães observa e transmuta em poesia tal como Vermeer transformou um muro em arte pura.

Escritos em tempos de Covid (a nuvem negra paira por cima do quadro!), os poemas deste livro celebram o regresso à vida «aberta todos os dias». Divide-se em quatro partes, retiradas de locuções latinas usadas no Renascimento como máximas: «locus amoenus», lugar ameno; «beatus ille», bendito aquele; «tempus fugit», o tempo voa; e «carpe diem», goza o dia. É precisamente nesta última arte que aparece o poema que dá o título ao livro. É bem representativo da poesia do cirurgião plástico que, sem pertencer a nenhuma escola literária, tem projectado no estrangeiro a poesia em português. Vale a pena ler o seu início:

«O mundo/ aberto lá fora. Difícil cansar-me dele/ O céu/ a entrar pela janela. O músculo do homem comum./ As laranjeiras de Córdova. Brindar com/ água da/ chuva. Os peixes do Nilo urinando na/ mesma água onde nadam. O vinho que fez/ um estágio nas caves do Douro/ e passou./ A lua a quem eu uivo cada noite/ (em segredo). Um relâmpago à janela:/ electrocardiograma/ de Deus (…).»

Chama deste logo a atenção os diferentes tamanhos dos versos que assinalam um ritmo variável, num poema que é afinal uma lista de coisas do mundo, erguidas, como o poema diz no final, «com a luva/ da linguagem.» A ironia sobre o vinho do Porto exemplifica o humor do poeta (o humor não passa de uma maneira de resistir ao tempo, isto é, de ignorar a morte). O uso de parêntesis, como na frase sobre o uivo é um dos seus artifícios (há mesmo um poema intitulado «entre parêntesis») E a metáfora do electrocardiograma é uma imagem forte, que serve para mostrar como é forte o coração de Deus.

Mais adiante no mesmo poema cruzam-se duas famosas estátuas: «(…) A Vitória de Samotrácia parecendo atrasada/ perguntando quelle heure est–il? à estátua da/ Vénus de Milo.» Não se pode deixar de sorrir, em primeiro lugar por as duas serem motes literárias – a Vitória de Samotrácia equivale a um automóvel de corrida para Filipo Marinetti no seu Manifesto Futurista e a Vénus de Milo equivale à Vénus de Milo para Álvaro de Campos; depois, porque nenhuma das Vénus pode usar relógio de pulso por não terem braços: e, finalmente, por as duas, feitas de puro mármore de Paros, serem perfeitamente intemporais. Como podem quaisquer estátuas gregas querer saber das horas?

O tempo é um dos grandes mistérios do mundo e, por isso, um tema continuado da poesia. Na Segunda Lei da Termodinâmica, a única lei física que permite distinguir entre passado e futuro, aparece uma grandeza chamada entropia que cresce inexoravelmente nos sistemas isolados.  Charles P. Snow disse, na sua famosa conferência de 1959 sobre «as duas culturas», que não conhecer Shakespeare era tão grave como não conhecer a Segunda Lei. A entropia é uma medida da desordem, isto é, o futuro distingue-se do passado por ser mais desordenado. O poeta do Porto joga com o tema universal da desordem quando refere a desordem dos «barcos na Cantareira», das árvores de fruta no pomar ou dos amigos sentados a uma mesa, em três dos poemas. A tensão entre ordem e desordem está, de resto, omnipresente.

Para os seres humanos, o grande problema do tempo é não serem eternos. O tema da morte é eloquentemente tratado no poema «Comentário sobre os velhos» (o poeta é irónico: «Alguém tem de/ ir à frente. a ir alguém/ que vão/ os velhos (…)  ou no poema «Autorretrato (ao cinquenta e cinco anos)» (“A/ cada noite que passa os pés/ensaiam no leito/ a sua/ posição final. A estátua definitiva (…)».  A ironia aqui é o poeta dizer que acordamos, normalmente, com os pés em forma de V de vitória (ou em forma de W, se há dois corpos, acrescenta num parêntesis).

Um grande poeta a seguir com grande atenção. Ainda tem muito tempo pela frente…»

 

VAMBERTO FREITASAçoriano Oriental, 10.2.23 e Diário Insular, 28.2.23
MUITO MAIS DO QUE A POESIA DO QUOTIDIANO

“Escrever é / fazer existir o que antes não existia / como este fósforo maduro que agora seguro na mão / vai ser chama / já é cinza.”
João Luís Barreto GuimarãesAberto Todos Os Dias 

«Por certo que o poeta João Luís Barreto Guimarães tem sido publicamente muito elogiado nestas semanas recentes após ter recebido o Prémio Pessoa, 2022. Já era muito conhecido e apreciado no nosso país pelos mais atentos à grande literatura. A sua poesia tem sido também muito comentada ao longo dos anos pela crítica internacional, após traduções em várias línguas, alguns desses volumes premiados em Portugal, assim como nos Estados Unidos, Macedónia e Itália. Retiro toda esta informação da sua bibliografia de capa no seu mais recente livro, Aberto Todos Os Dias. A verdade é que na azáfama do dia e da leitura generalizada alguns de nós não chegámos às suas páginas até à chamada de atenção na nossa imprensa nacional logo após esta outra e recente distinção. Tratei de imediato colocar na minha estante alguns dos seus livros (começou a publicar em 1989 com Há Violinos na Tribo), os que encontrei nalgumas livrarias, quando já muitos outros os procuravam: O Tempo Avança por Sílabas  (antologia de 2019), Nómada e Movimento. Entraram bem na minha casa, pela originalidade das suas linguagens e pela forma continuada que cada poema toma, quase sem que o leitor se dê conta tanto do simbolismo que cada objeto, personagem ou olhar lhe provoca, a narrativa dos dias e dos momentos vividos e lembrados, os significados de uma vida que permanecem na memória e consciência de quem procura perceber um pouco mais o que à primeira vista parece apenas um incidente ou encontro banal, tudo o que geralmente estaria condenado ao esquecimento. A poesia de Aberto Todos Os Dias é como que um eloquente silêncio, um murmúrio que nunca mais nos deixa na liberdade de não pensar, na liberdade de simplesmente existir num vaivém de rotina e gestos que, só aparentemente, nada influem na nossa solidão, ou na companhia de outros seres significantes. Cada poema é de uma ironia a um tempo leve e dilacerante quando nos damos conta de que a nossa vida é, quase no seu todo, feita de nada mais do que estar tentativamente em paz enquanto seguramos a sanidade possível no tremor e incertezas constantes a cada minuto que passa. Uma mão cheia de coisas à espera de / acontecer. O copo / quase a / partir. / O prazo quase a acabar… 

A sequência de Aberto Todos Os Dias vem nomeada em secções (locus amoenus, beatus ille, tempus fugit, carpe diem) num andamento que nos relembra muito do que olhamos e não vemos, muito do que pensamos mas não retemos, muito da vida quotidiana entre os que nos rodeiam no trabalho ou no lazer momentâneo, até à viagem realizada ou imaginada com os chamamentos a outros lugares, a outros poetas, a outras vivências que diferem só nos seus fusos horários pelo mundo fora, cada geografia quase sempre ocupada num vazio próprio. João Luís Barreto Guimarães é considerado pela crítica como “poeta do quotidiano”, poeta das supostas pequenas coisas que nos seus versos tomam o brilho que não havíamos notado antes, e será também um poeta de grande alcance perante a História que todos vivemos, expressa ora numa metáfora, ora na menção de um único e reconhecido nome. A clareza das suas palavras fazem-nos lembrar um Robert Frost ante a beleza sem idade de uma árvore florida, ou um T. S. Eliot na sua poesia pós-terra erma, quando este vai ao encontro da sua própria pessoa e condição de vida. Barreto Guimarães é médico, mas só raramente o leitor se dá conta desse facto nesta poesia. O que acontece é que o mais ínfimo pormenor da sua observação de cada instante acaba num verso, uma vez mais, que nos transmite tudo o que passa a ser essencial à nossa empatia ou, pelo contrário, ao estranhamento e distanciamento perante o retrato pintado em palavras. Sair de si e caminhar para o mundo, ir ao encontro do outro nas mais diversas circunstâncias, vividas ou imaginadas, fazer que cada palavra se encaixe num canto poético, numa forma de balada filosófica que vale a pena memorizar e citar quando queremos saber um pouco mais de nós próprios. 

“Se amanhã / vires um miúdo na calçada portuguesa / (bicos dos pés no calcário / tentando evitar / basalto) impondo-se o desafio de não / poder pisar cor preta / já tens aí o / poema.” 

O uso de parêntesis é parte de um recurso técnico, muito comum nos poemas de João Luís Barreto Guimarães, como aliás já outros o tinham notado. É um modo, afirmam outros críticos, de um aparte que explica ou contextualiza um verso ou outro, ou o poema no seu todo. É ainda a habilidade literária de tornar cada verso uma narrativa, na recriação de uma “personagem”, esse pormenor que nos permite outra visualização, o tal olhar o momento agora poetizado. Abertos Todos Os Dias abre com uma retoma do livro Movimento que antecede a obra presente: “A margem do rio desenha-se / com luzes que bruxuleiam / quando caminhas contigo: é inquietação / o que sentes? / Vê se mudas isso em ti.” É um outro modo de dizer ao leitor que a narrativa tem outros inícios, que a continuidade não muda de forma de livro para livro, reforça a continuidade temática do autor: os dias e noites vividas, os instantes que marcam, o chamamento constante a outros poetas nacionais e estrangeiros, em menção direta, nas epígrafes, em alusões-outras – a luz lançada sobre as palavras. A clareza desta poesia esconde em si toda a complexidade interior sentida, percebida pelo poeta. É certo que outros escritores portugueses contemporâneos também cultivaram a arte de dizer o que para a maioria de nós tinha ficado esquecido, silenciado, o poder das pequenas coisas, dos momentos diários, o significado profundo que os nossos mais chegados têm para o nosso modo de ser e estar. Insista-se na literatura não só como um jogo de palavras e invenção pura, mas ainda como o espelho simultaneamente claro, distorcido, múltiplo, a imagem devolvida a qualquer ser humano no mais distante e escondido recôndito. A urbanidade humanizada tanto vê a criança a brincar aos pulos, como reconhece a dor e a alegria da sobrevivência dos marginalizados e oprimidos entre nós. 

O papel da poesia  – disse João Luís Barreto Guimarães a Valdemar Cruz numa entrevista ao Expresso pouco depois de receber o Prémio Pessoa  –  também é escrever sobre tantas coisas que nos passam ao lado ou que preferimos olhar para o lado quando acontecem. É o problema da indiferença e dos interesses que respondem mais às necessidades de quem dirige se manter naquela posição e enganar o povo com pão e circo. O papel da poesia é também escrever sobre o feio, sobre o horrível. A poesia não tem que ser bonita. Tem que ser harmónica, no sentido em que cada palavra transporta em si uma imagem e um som. O poema vai repintar uma certa realidade. Mas o poema pode terminar de uma forma disfórica. Pode ser feio. Pode ser uma cacofonia que custe dizer. Acho muito importante o poeta contemporâneo não ser autista da sua própria sociedade e achar que a poesia é meramente um divertimento, ou uma arte de salão, uma arte burguesa, que incumpre a sua função política, social e de resistência...”

Para mim, é bom ler isto, vindo de quem vem. Passada a euforia da poesia do Nada, arrogantemente académica, indecifrável na sua oca pretensiosidade, que mais parecia concorrer com o preenchimento de palavras cruzadas no jornal, sinalizando nada mais do que informação enciclopédica. Eis um regresso da arte, nas palavras acima citadas, também como resistência à desorientação dos diversos poderes que comandam as nossas sociedades, que se querem abertas, democráticas, decentes. A arte não tem de ser, assim mesmo, panfleto ideológico. Tem de ver o mosaico humano no seu todo, apontando o desvio arbitrário de cada quadro. A literatura contém em si o riso e o choro – a humanidade na sua contingência, a luz em “tempos escuros”, parafraseando a grande pensadora política e cultural que foi Hannah Arendt. Um professor meu dizia-nos numa faculdade americana: não há nada de desprezível em gostarmos de uma sinfonia de Beethoven e de uma canção dos Beatles. Só que temos de saber decifrar a diferença entre uma e outra composição, tudo no seu contexto próprio. Como na arte literária. 

 João Luís Barreto GuimarãesAberto Todos Os Dias, Lisboa Quetzal, 2023. A entrevista aqui citada vem na Revista do Expresso, intitulada “A caneta ou o bisturi/Prémio Pessoa 2022”, na edição de 30 de Dezembro, 2022, e conduzida por Valdemar Cruz, com fotos de Rui Duarte Silva

 

JOAQUIM MARGARIDOBlogue Erros meus, Má fortuna, Amor ardente, 1.2.23

LIVRO: "aberto todos os dias" 

«“Já repararam / no bote (pintado a preto e branco) / naquela curva do rio onde / a cidade chega ao fim / dançando quase / ao acaso a cinco ou seis metros da margem / (um remo para cada lado qual / petiz ao acordar) / o ocre vivo / do crepúsculo enchendo de cor / o cenário onde ninguém o navega / nem o reclama para si? / A garça / já.”

[poema “Aquela garça ali”, de João Luís Barreto Guimarães]  

Doze livros depois de “Há Violinos na Tribo”, edição de autor de 1989, João Luís Barreto Guimarães volta a inquietar-nos com “aberto todos os dias”, a sua mais recente criação. O livro surge menos de um mês após a distinção com o Prémio Pessoa 2022 e nele o poeta regressa aos pequenos-nadas de que a vida é feita, olhando de forma atenta o seu (e nosso) quotidiano. A familiaridade que brota dos espaços, dos tempos, das situações, gera no leitor a maior das cumplicidades. Lúcido e preciso, sem dispensar a ironia, o olhar de João Luís Barreto Guimarães traz ao nosso encontro as imagens e os sons dos dias repartidos entre a prática médica, uma caminhada à beira-rio ou os momentos passados à mesa do café. A sua poesia convida-nos a ver a cidade que se afadiga para ir jantar a casa, os pequenos avanços que trazem sempre retrocessos, a maçã de Eva a pedir uma segunda dentada, o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha, os enfermeiros exaustos que saem de mais um turno, um ministro que mentiu. A isto respondemos com um sorriso, certos de que o convite é tudo menos inocente. 

Sorrimos quando o poema se faz termo de utilização do livro, a pedir que seja lido e aceite. Ou quando começa a construir-se a partir do momento em que a página se vira sobre si. Ou, ainda, quando se explica, com calma, numa introdução à poesia. Faz-nos bem, o poema. Este poema de um minuto que nos leva a olhar o céu e a ver num relâmpago um electrocardiograma de Deus, nas unhas roídas luas que nascem dos dedos, no sol que passa exactamente por entre os gargalos das garrafas que estivemos a beber o solstício da amizade. Não conseguimos olhar para a poesia de João Luís Barreto Guimarães sem ver nela a vitalidade de Miguel Torga na sua relação com a terra, a musicalidade de Eugénio de Andrade na sua relação com a alma, a luminosidade de Sophia na sua relação com a vida. A diferença estará nas linhas, não aquelas com que o poema se cose, mas as que se aproximam ou se afastam de uma baleia que deu à praia sem vida, de um quarto de hora numa fatia de pizza ou de uma torneira que administra 30 gotas por minuto na boca do lavatório. Alguém tem de amar o vulgar.»

 

CRISTINA NOBREJornal de Leiria, 4.2.23

João Luís Barreto Guimarães (2023) aberto todos os dias OU poéticos reflexos na água

O autor recebeu o prémio Pessoa em 2022 e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia publicado depois dessa consagração 

«Quando abri o ano de 2022, neste jornal de província, com texto de opinião sobre movimento  (2020) de João Luís Barreto Guimarães, gravei-o na história literária com os dados bio e bibliográficos mínimos, acrescidos da referência às várias traduções e prémios que a sua obra poética tinha recebido. Movimentei-me entre um paradigma antigo, clássico, e outro mais recente, ligado à receção-canonização-comercialização como instrumentos para introduzir um ‘objeto da arte literária’ a quem o desconhece/ia. No prazo de um ano (vale a pena referir o(s) confinamento(s) ou todos diferentemente o(s) conhecemos?), o autor recebeu o prémio Pessoa em 2022 e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia publicado depois dessa consagração: (re)abre 2023 (embora, antes do índice final, o leitor seja informado que os poemas nele gravados foram “escritos entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em algumas cidades estrangeiras.”, opus cit., p. 75, o que pode baralhar a cronologiatoponímia clássica…).

Como leitora apaixonada de poesia, ando sempre à procura do livro único e, qualquer leitor, atento aos sinais, não pode deixar de interpretar nesse espectro de sentido/indício a epígrafe final, inscrita na p. 77, de Christopher ReidHe pursued a vision of wholeness by means of collage. Nem a da p. 11, retirada de movimento, que autoriza a ler este conjunto de poemas como resposta(s) às inquietações do próprio caminho. Todas as autobiografias poéticas se tecem dos textos acumulados/ preservados na memória da arte/vida…

O que mudou no trajeto? Os pilares de organização dos poemas passou das 7 partes para os 4 sustentáculos clássicos: locus amoenus  (conforto amoroso na paisagem ideal) | beatus ille  (afortunado desprendimento no campo horaciano) | tempus fugit  (fugacidade irreparável do tempo virgiliano ou a alimentação da natureza maternal?) | carpe diem  (aproveitamento horaciano do dia presente). Cada quarto com 10 poemas, numa reconhecível simetria capaz de acalmar inquietações desenhadas pelas luzes que bruxuleiam até uma ‘curva do rio’ (p. 73) onde as luzes na água/rio voltam – melancólica, ironicamente? – ao reencontro do sentir: “[…] uma agitação inquieta. Não / demores. Vem depressa. / Não sossego / se não te falo.” O corpo desta casa ergue-se com a magnitude da solidão do poema inaugural “Aqui” (p. 17), com o reconhecimento dos lugares em nós desde R. M. Rilke com Heirsein ist herrlisch e a língua, o esperanto, em que os humanos se podem entender. Viria a propósito perceber o ‘piscar de olhos’ ao tradutor, como fazedor dos possíveis e limitados esperantos sistematizados, mas nada me autoriza a fazê-lo. A não ser a perfeição da forma e o polimento das arestas: as 4 colunas são sustentadas por um poema em que o hic et nunc e a comunicação sem barreiras é o tempo do momento, até ao final, em que a intimidade e a presença/ausência (vice-versa?) de um tu garantem os pedaços necessários à completude… Porém, “Há uma mão-cheia de coisas à espera de / acontecer. […] / […] / […] A ordem / isso não sei.”(Coisas à espera de vez, p. 31) e “O poema era o / texto (o amor o pretexto […]” (Na chegada do Outono, p. 49).

O que o poeta sabe são as palavras de outros – tantos (Soderberg, p. 15; Ritsos, p. 29; Heaney, p. 33; Larkin, p. 34; Elytis, p. 47; Celan, p. 61…) – que o atravessam e o distinguem dos que passam ao largo (“Ele fazia poemas.”, p. 22), o que é mais do que ler ou ‘apenas viver a sua vida’, por isso está sempre “de dentro do poema)” (p. 43), celebrando a leitura enigmática da poesia e do tempo na mãe natureza, reconhecendo “o eco [que] fala as / suas línguas.” (p. 56), trazendo ‘o que é feio’ (p. 63) para o poema, disponível para o mundo, “Como / quem ergue a verdade com a luva / da linguagem.” (Aberto todos os dias, p. 71). Em fuga ao renascimento, o holandês Vermeer (durante tantos dias esquecido e ignorado…) veste esta quarentena de poemas com Vista de Delft, a ilusão urbana entre as águas que correm e transportam as melancolias e ironias poéticas para os cirúrgicos (e narcísicos?) mares de outras misteriosas criações: reflexos de coração aberto à fragilidade de todos os dias…»

 

SÉRGIO ALMEIDA, Jornal de Notícias, 1.2.23

TEREMOS SEMPRE A PULSÃO DA VIDA

Novo livro de João Luís Barreto Guimarães é uma celebração reflexiva do quotidiano

"Durante meses a fio, no período inicial em que a covid-19 toou de assalto a vida de todos nós, João Luís Barreto Guimarães foi incapaz de escrever um poema sequer. Percebe-se o bloqueio: autor de uma poesia erigida sob o milagre contínuo da existência, ainda que atravessado por constantes dúvidas e inquietações, o recente Prémio Pessoa sentiu-se subitamente tolhido pela antítese da vida que a pandemia trouxe. No lugar da liberdade houve o(s) confinamento(s); em vez da esperança, apenas a contagem sibilina de vítimas, como se se tratasse de uma soma contabilística.

Se a dita normalidade demorou quase dois anos a voltar a instalar-se, Barreto Guimarães não precisou, felizmente, de tanto tempo para voltar ao estado poético habitual.

O lento recomeço de uma sociedade avessa à pausa é o fio condutor de "Aberto todos os dias", uma breve mas fecunda jornada poética pela miríade de encantos do quotidiano, dos quais estivemos privados à força durante demasiado tempo.

É, assim, neste vagaroso regresso à vida que se detém o olhar do poeta, capaz de se deter em objectos ou paisagens esquecíeis na sua aparência. Mas, como escreve no belíssimo "O incêndio", "alguém tem de amar o banal." Mesmo que sejam "luas que nascem dos dedos quando se roem as unhas" ou "o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha".

Afinal, depois do longo período de privações, difícil mesmo é cansarmo-nos do "mundo aberto lá fora", que se espraia com langor, indiferente aos nossos estados de alma. É na magnificência dos detalhes que reside a magnificência de muitos destes poemas, em que a apologia do comum não exclui  - antes reforça - a convicção do milagre de existir.

Para que "nem um só dia (seja) desperdiçado", só necessitamos de "estar à disposição do mundo". Por toda a parte "há uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer", do "prazo quase a acabar" ao "vermelho do semáforo (que reteve um par de vidas) a instantes de ceder a sua vez à cor verde."

A celebração reflexiva do quotidiano operada neste conjunto de poemas não é linear ou sequer uniforme. Bastas vezes a denúncia se acerca destes escritos, seja para dar forma à discriminação para com os mais velhos - bem evidente no combate à pandemia - ou a invocar a mediocridade, através da recorrente figura do execrável sr. Lopes."

 

JOSÉ MÁRIO SILVAExpresso, 27.1.23

ABERTO TODOS OS DIAS

"Alguém tem de amar / o banal. Alguém tem de tratar disso." Eis uma espécie de caderno de encargos - atenção máxima às coisas mínimas, com fugidio lirismo - a que João Luís Barreto Guimarães se entrega com júbilo, subtileza, ironia e sentido lúdico (sem esquecer a habitual abundância de parêntesis, e a costumeira aparição do Sr. Lopes) num livro frugal e feliz, o primeiro que publica depois de lhe ter sido atribuído no final de 2022, o Prémio Pessoa."

 

LUÍS RICARDO DUARTE, Visão - Magazine, 19.1.23

À disposição do mundo

«Não é preciso estar nomeada, direta ou indiretamente, para a pandemia de Covid-19 atravessar o novo livro de poemas de João Luís Barreto Guimarães. O contentamento que percorre estes poemas será facilmente reconhecido pelo leitor como seu. É a alegria de estar de regresso ao café onde se escreve um poema, de se abeirar da margem do rio, de lhe ver as gaivotas e embarcações, de poder afirmar, sem constrangimentos, os pequenos gestos do dia a dia. Mas Aberto Todos os Dias, que se publica na sequência da atribuição do Prémio Pessoa ao poeta e médico, é também a celebração da aurea mediocritas defendida por Horácio nas suas odes. O louvor da vida simples (que, para muitos, a pandemia também veio revalorizar). Nesse sentido, o livro divide-se nas quatro aspirações do homem do Renascimento (locus amoenusbeatus illetempus fugitcarpe diem), decantadas em poemas que buscam um ideal de vida ou a integridade de cada momento. No seu reverso, também se assume a certeza de que o tempo corre imparável, sem se repetir. Aberto Todos os Dias convoca constantemente o leitor (leia-se o poema O Leitor Acaba de Virar a Página) não para uma intimidade partilhada, mas para o fazer parte da poesia, aquela que olha para as coisas banais e anónimas, na certeza de que “escrever é/ fazer existir o que antes não existia”.»

 

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