40 poemas
(Porto, Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 2020-2022)
1ª edição, Quetzal, Lisboa,
Janeiro 2023, esg.
capa de Rui Cartaxo Rodrigues,
a partir de Vista de Delft, de Johannes Vermeer
direcção literária de Francisco José Viegas
2ª edição, Quetzal, Lisboa,
Janeiro 2023
3ª edição, in «Poesia Reunida»,
Quetzal, Lisboa, Abril 2023
> entrevista TSF
> entrevista Rádio Renascença
> entrevista Antena 1
> encomendar o livro na Bertrand, na Wook, na Almedina ou na Fnac.
§
VAMBERTO FREITAS, Açoriano Oriental, 10.2.23 e Diário Insular, 28.2.23
MUITO MAIS DO QUE A
POESIA DO QUOTIDIANO
“Escrever é / fazer
existir o que antes não existia / como este fósforo maduro que agora seguro na
mão / vai ser chama / já é cinza.”
João Luís Barreto Guimarães, Aberto Todos Os Dias
«Por certo que o
poeta João Luís Barreto Guimarães tem sido publicamente muito
elogiado nestas semanas recentes após ter recebido o Prémio Pessoa,
2022. Já era muito conhecido e apreciado no nosso país pelos mais atentos à
grande literatura. A sua poesia tem sido também muito comentada ao longo dos
anos pela crítica internacional, após traduções em várias línguas, alguns
desses volumes premiados em Portugal, assim como nos Estados Unidos, Macedónia
e Itália. Retiro toda esta informação da sua bibliografia de capa no seu mais
recente livro, Aberto Todos Os Dias. A verdade é que na azáfama do dia e da leitura
generalizada alguns de nós não chegámos às suas páginas até à chamada de
atenção na nossa imprensa nacional logo após esta outra e recente distinção.
Tratei de imediato colocar na minha estante alguns dos seus livros (começou a
publicar em 1989 com Há Violinos na Tribo), os que encontrei
nalgumas livrarias, quando já muitos outros os procuravam: O Tempo
Avança por Sílabas (antologia de 2019), Nómada e Movimento.
Entraram bem na minha casa, pela originalidade das suas linguagens e pela forma
continuada que cada poema toma, quase sem que o leitor se dê conta tanto do
simbolismo que cada objeto, personagem ou olhar lhe provoca, a narrativa dos
dias e dos momentos vividos e lembrados, os significados de uma vida que
permanecem na memória e consciência de quem procura perceber um pouco mais o
que à primeira vista parece apenas um incidente ou encontro banal, tudo o que
geralmente estaria condenado ao esquecimento. A poesia de Aberto Todos
Os Dias é como que um eloquente silêncio, um murmúrio que nunca mais
nos deixa na liberdade de não pensar, na liberdade de simplesmente existir num
vaivém de rotina e gestos que, só aparentemente, nada influem na nossa solidão,
ou na companhia de outros seres significantes. Cada poema é de uma ironia a um
tempo leve e dilacerante quando nos damos conta de que a nossa vida é, quase no
seu todo, feita de nada mais do que estar tentativamente em paz enquanto
seguramos a sanidade possível no tremor e incertezas constantes a cada minuto
que passa. Uma mão cheia de coisas à espera de / acontecer. O copo /
quase a / partir. / O prazo quase a acabar…
A sequência de Aberto Todos Os Dias vem
nomeada em secções (locus amoenus, beatus ille, tempus fugit, carpe diem)
num andamento que nos relembra muito do que olhamos e não vemos, muito do que
pensamos mas não retemos, muito da vida quotidiana entre os que nos rodeiam no
trabalho ou no lazer momentâneo, até à viagem realizada ou imaginada com os
chamamentos a outros lugares, a outros poetas, a outras vivências que diferem
só nos seus fusos horários pelo mundo fora, cada geografia quase sempre ocupada
num vazio próprio. João Luís Barreto Guimarães é considerado
pela crítica como “poeta do quotidiano”, poeta das supostas pequenas
coisas que nos seus versos tomam o brilho que não havíamos notado antes, e será
também um poeta de grande alcance perante a História que todos vivemos,
expressa ora numa metáfora, ora na menção de um único e reconhecido nome. A
clareza das suas palavras fazem-nos lembrar um Robert Frost ante
a beleza sem idade de uma árvore florida, ou um T. S. Eliot na
sua poesia pós-terra erma, quando este vai ao encontro da sua própria pessoa e
condição de vida. Barreto Guimarães é médico, mas só raramente
o leitor se dá conta desse facto nesta poesia. O que acontece é que o mais
ínfimo pormenor da sua observação de cada instante acaba num verso, uma vez
mais, que nos transmite tudo o que passa a ser essencial à nossa empatia ou,
pelo contrário, ao estranhamento e distanciamento perante o retrato pintado em
palavras. Sair de si e caminhar para o mundo, ir ao encontro do outro nas mais
diversas circunstâncias, vividas ou imaginadas, fazer que cada palavra se
encaixe num canto poético, numa forma de balada filosófica que vale a pena
memorizar e citar quando queremos saber um pouco mais de nós próprios.
“Se amanhã / vires um
miúdo na calçada portuguesa / (bicos dos pés no calcário / tentando evitar /
basalto) impondo-se o desafio de não / poder pisar cor preta / já tens aí o /
poema.”
O uso de parêntesis é
parte de um recurso técnico, muito comum nos poemas de João Luís
Barreto Guimarães, como aliás já outros o tinham notado. É um modo, afirmam
outros críticos, de um aparte que explica ou contextualiza um verso ou outro,
ou o poema no seu todo. É ainda a habilidade literária de tornar cada verso uma
narrativa, na recriação de uma “personagem”, esse pormenor que nos permite
outra visualização, o tal olhar o momento agora poetizado. Abertos Todos Os Dias abre
com uma retoma do livro Movimento que antecede a obra
presente: “A margem do rio desenha-se / com luzes que bruxuleiam /
quando caminhas contigo: é inquietação / o que sentes? / Vê se mudas isso em
ti.” É um outro modo de dizer ao leitor que a narrativa tem outros inícios,
que a continuidade não muda de forma de livro para livro, reforça a
continuidade temática do autor: os dias e noites vividas, os instantes que
marcam, o chamamento constante a outros poetas nacionais e estrangeiros, em
menção direta, nas epígrafes, em alusões-outras – a luz lançada sobre as
palavras. A clareza desta poesia esconde em si toda a complexidade interior
sentida, percebida pelo poeta. É certo que outros escritores portugueses
contemporâneos também cultivaram a arte de dizer o que para a maioria de nós
tinha ficado esquecido, silenciado, o poder das pequenas coisas, dos momentos
diários, o significado profundo que os nossos mais chegados têm para o nosso
modo de ser e estar. Insista-se na literatura não só como um jogo de palavras e
invenção pura, mas ainda como o espelho simultaneamente claro, distorcido,
múltiplo, a imagem devolvida a qualquer ser humano no mais distante e escondido
recôndito. A urbanidade humanizada tanto vê a criança a brincar aos pulos, como
reconhece a dor e a alegria da sobrevivência dos marginalizados e oprimidos
entre nós.
“O papel da poesia
– disse João Luís Barreto Guimarães a Valdemar Cruz numa
entrevista ao Expresso pouco depois de receber o Prémio Pessoa
– também é escrever sobre tantas coisas que nos passam ao lado ou que
preferimos olhar para o lado quando acontecem. É o problema da indiferença e
dos interesses que respondem mais às necessidades de quem dirige se manter
naquela posição e enganar o povo com pão e circo. O papel da poesia é também
escrever sobre o feio, sobre o horrível. A poesia não tem que ser bonita. Tem
que ser harmónica, no sentido em que cada palavra transporta em si uma imagem e
um som. O poema vai repintar uma certa realidade. Mas o poema pode terminar de
uma forma disfórica. Pode ser feio. Pode ser uma cacofonia que custe dizer.
Acho muito importante o poeta contemporâneo não ser autista da sua própria
sociedade e achar que a poesia é meramente um divertimento, ou uma arte de
salão, uma arte burguesa, que incumpre a sua função política, social e de
resistência...”.
Para mim, é bom ler
isto, vindo de quem vem. Passada a euforia da poesia do Nada, arrogantemente
académica, indecifrável na sua oca pretensiosidade, que mais parecia concorrer
com o preenchimento de palavras cruzadas no jornal, sinalizando nada mais do
que informação enciclopédica. Eis um regresso da arte, nas palavras acima
citadas, também como resistência à desorientação dos diversos poderes que
comandam as nossas sociedades, que se querem abertas, democráticas, decentes. A
arte não tem de ser, assim mesmo, panfleto ideológico. Tem de ver o mosaico
humano no seu todo, apontando o desvio arbitrário de cada quadro. A literatura
contém em si o riso e o choro – a humanidade na sua contingência, a luz em “tempos escuros”,
parafraseando a grande pensadora política e cultural que foi Hannah
Arendt. Um professor meu dizia-nos numa faculdade americana: não há nada de
desprezível em gostarmos de uma sinfonia de Beethoven e de uma
canção dos Beatles. Só que temos de saber decifrar a diferença
entre uma e outra composição, tudo no seu contexto próprio. Como na arte
literária.
♦ João Luís Barreto
Guimarães, Aberto Todos Os Dias, Lisboa Quetzal, 2023. A entrevista aqui citada vem
na Revista do Expresso, intitulada “A caneta ou o bisturi/Prémio Pessoa 2022”,
na edição de 30 de Dezembro, 2022, e conduzida por Valdemar Cruz, com fotos
de Rui Duarte Silva.»
JOAQUIM MARGARIDO, Blogue Erros meus, Má fortuna, Amor ardente,
1.2.23
LIVRO: "aberto
todos os dias"
«“Já repararam / no
bote (pintado a preto e branco) / naquela curva do rio onde / a cidade chega ao
fim / dançando quase / ao acaso a cinco ou seis metros da margem / (um remo
para cada lado qual / petiz ao acordar) / o ocre vivo / do crepúsculo enchendo
de cor / o cenário onde ninguém o navega / nem o reclama para si? / A garça /
já.”
[poema “Aquela garça ali”, de João Luís Barreto Guimarães]
Doze livros depois de
“Há Violinos na Tribo”, edição de autor de 1989, João Luís
Barreto Guimarães volta a inquietar-nos com “aberto todos os dias”,
a sua mais recente criação. O livro surge menos de um mês após a distinção com
o Prémio Pessoa 2022 e nele o poeta regressa aos
pequenos-nadas de que a vida é feita, olhando de forma atenta o seu (e nosso)
quotidiano. A familiaridade que brota dos espaços, dos tempos, das situações,
gera no leitor a maior das cumplicidades. Lúcido e preciso, sem dispensar a
ironia, o olhar de João Luís Barreto Guimarães traz ao nosso
encontro as imagens e os sons dos dias repartidos entre a prática médica, uma
caminhada à beira-rio ou os momentos passados à mesa do café. A sua poesia
convida-nos a ver a cidade que se afadiga para ir jantar a casa, os pequenos
avanços que trazem sempre retrocessos, a maçã de Eva a pedir uma segunda
dentada, o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha, os enfermeiros exaustos
que saem de mais um turno, um ministro que mentiu. A isto respondemos com um
sorriso, certos de que o convite é tudo menos inocente.
Sorrimos quando o
poema se faz termo de utilização do livro, a pedir que seja lido e aceite. Ou
quando começa a construir-se a partir do momento em que a página se vira sobre
si. Ou, ainda, quando se explica, com calma, numa introdução à poesia. Faz-nos
bem, o poema. Este poema de um minuto que nos leva a olhar o céu e a ver num
relâmpago um electrocardiograma de Deus, nas unhas roídas luas que nascem dos
dedos, no sol que passa exactamente por entre os gargalos das garrafas que
estivemos a beber o solstício da amizade. Não conseguimos olhar para a poesia
de João Luís Barreto Guimarães sem ver nela a vitalidade
de Miguel Torga na sua relação com a terra, a musicalidade
de Eugénio de Andrade na sua relação com a alma, a
luminosidade de Sophia na sua relação com a vida. A diferença
estará nas linhas, não aquelas com que o poema se cose, mas as que se aproximam
ou se afastam de uma baleia que deu à praia sem vida, de um quarto de hora numa
fatia de pizza ou de uma torneira que administra 30 gotas por minuto na boca do
lavatório. Alguém tem de amar o vulgar.»
CRISTINA NOBRE, Jornal de Leiria, 4.2.23
João Luís Barreto
Guimarães (2023) aberto todos os dias OU poéticos reflexos na
água
O autor recebeu o prémio Pessoa em 2022 e aberto todos os dias é
o primeiro livro de poesia publicado depois dessa consagração
«Quando abri o ano de
2022, neste jornal de província, com texto de opinião sobre movimento (2020)
de João Luís Barreto Guimarães, gravei-o na história literária com
os dados bio e bibliográficos mínimos, acrescidos da referência às várias
traduções e prémios que a sua obra poética tinha recebido. Movimentei-me entre
um paradigma antigo, clássico, e outro mais recente, ligado à receção-canonização-comercialização
como instrumentos para introduzir um ‘objeto da arte literária’ a quem o
desconhece/ia. No prazo de um ano (vale a pena referir o(s) confinamento(s) ou
todos diferentemente o(s) conhecemos?), o autor recebeu o prémio Pessoa em
2022 e aberto todos os dias é o primeiro livro de poesia
publicado depois dessa consagração: (re)abre 2023 (embora, antes do índice
final, o leitor seja informado que os poemas nele gravados foram “escritos
entre 2020 e 2022 no Porto, Leça da Palmeira, Venade, Torre da Medronheira e em
algumas cidades estrangeiras.”, opus cit., p. 75, o que pode baralhar a
cronologiatoponímia clássica…).
Como leitora apaixonada
de poesia, ando sempre à procura do livro único e, qualquer leitor, atento aos
sinais, não pode deixar de interpretar nesse espectro de sentido/indício a
epígrafe final, inscrita na p. 77, de Christopher Reid: He pursued a vision of
wholeness by means of collage. Nem a da p. 11, retirada de movimento,
que autoriza a ler este conjunto de poemas como resposta(s) às inquietações do
próprio caminho. Todas as autobiografias poéticas se tecem dos textos
acumulados/ preservados na memória da arte/vida…
O que mudou no trajeto?
Os pilares de organização dos poemas passou das 7 partes para os 4
sustentáculos clássicos: locus amoenus (conforto amoroso
na paisagem ideal) | beatus ille (afortunado desprendimento
no campo horaciano) | tempus fugit (fugacidade irreparável do
tempo virgiliano ou a alimentação da natureza maternal?) | carpe diem
(aproveitamento horaciano do dia presente). Cada quarto com 10 poemas, numa
reconhecível simetria capaz de acalmar inquietações desenhadas pelas luzes que
bruxuleiam até uma ‘curva do rio’ (p. 73) onde as luzes na água/rio
voltam – melancólica, ironicamente? – ao reencontro do sentir: “[…] uma
agitação inquieta. Não / demores. Vem depressa. / Não sossego / se não te falo.”
O corpo desta casa ergue-se com a magnitude da solidão do poema inaugural “Aqui”
(p. 17), com o reconhecimento dos lugares em nós desde R. M. Rilke com Heirsein
ist herrlisch e a língua, o esperanto, em que os humanos se podem
entender. Viria a propósito perceber o ‘piscar de olhos’ ao
tradutor, como fazedor dos possíveis e limitados esperantos sistematizados, mas
nada me autoriza a fazê-lo. A não ser a perfeição da forma e o polimento das
arestas: as 4 colunas são sustentadas por um poema em que o hic et
nunc e a comunicação sem barreiras é o tempo do momento, até ao final,
em que a intimidade e a presença/ausência (vice-versa?) de um tu garantem os
pedaços necessários à completude… Porém, “Há uma mão-cheia de coisas à
espera de / acontecer. […] / […] / […] A ordem / isso não sei.”(Coisas à
espera de vez, p. 31) e “O poema era o / texto (o amor o pretexto […]”
(Na chegada do Outono, p. 49).
O que o poeta sabe são
as palavras de outros – tantos (Soderberg, p. 15; Ritsos, p.
29; Heaney, p. 33; Larkin, p. 34; Elytis,
p. 47; Celan, p. 61…) – que o atravessam e o distinguem dos que
passam ao largo (“Ele fazia poemas.”, p. 22), o que é mais do que ler ou ‘apenas viver
a sua vida’, por isso está sempre “de dentro do poema)” (p. 43),
celebrando a leitura enigmática da poesia e do tempo na mãe natureza,
reconhecendo “o eco [que] fala as / suas línguas.” (p. 56), trazendo ‘o
que é feio’ (p. 63) para o poema, disponível para o mundo, “Como / quem
ergue a verdade com a luva / da linguagem.” (Aberto todos os dias, p.
71). Em fuga ao renascimento, o holandês Vermeer (durante
tantos dias esquecido e ignorado…) veste esta quarentena de poemas com Vista
de Delft, a ilusão urbana entre as águas que correm e transportam as
melancolias e ironias poéticas para os cirúrgicos (e narcísicos?) mares de
outras misteriosas criações: reflexos de coração aberto à fragilidade de todos
os dias…»
SÉRGIO ALMEIDA, Jornal de Notícias, 1.2.23
TEREMOS SEMPRE A PULSÃO
DA VIDA
Novo livro de João Luís Barreto Guimarães é uma celebração
reflexiva do quotidiano
"Durante meses a
fio, no período inicial em que a covid-19 toou de assalto a vida de todos
nós, João Luís Barreto Guimarães foi incapaz de escrever um
poema sequer. Percebe-se o bloqueio: autor de uma poesia erigida sob o milagre
contínuo da existência, ainda que atravessado por constantes dúvidas e
inquietações, o recente Prémio Pessoa sentiu-se subitamente tolhido pela
antítese da vida que a pandemia trouxe. No lugar da liberdade houve o(s)
confinamento(s); em vez da esperança, apenas a contagem sibilina de vítimas,
como se se tratasse de uma soma contabilística.
Se a dita normalidade
demorou quase dois anos a voltar a instalar-se, Barreto Guimarães não
precisou, felizmente, de tanto tempo para voltar ao estado poético habitual.
O lento recomeço de uma
sociedade avessa à pausa é o fio condutor de "Aberto todos os dias",
uma breve mas fecunda jornada poética pela miríade de encantos do quotidiano,
dos quais estivemos privados à força durante demasiado tempo.
É, assim, neste vagaroso
regresso à vida que se detém o olhar do poeta, capaz de se deter em objectos ou
paisagens esquecíeis na sua aparência. Mas, como escreve no belíssimo
"O incêndio", "alguém tem de amar o banal." Mesmo
que sejam "luas que nascem dos dedos quando se roem as unhas"
ou "o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha".
Afinal, depois do longo
período de privações, difícil mesmo é cansarmo-nos do "mundo aberto lá fora",
que se espraia com langor, indiferente aos nossos estados de alma. É na
magnificência dos detalhes que reside a magnificência de muitos destes poemas,
em que a apologia do comum não exclui - antes reforça - a convicção do
milagre de existir.
Para que "nem um só dia (seja) desperdiçado",
só necessitamos de "estar à disposição do mundo". Por toda a
parte "há uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer", do
"prazo quase a acabar" ao "vermelho do semáforo (que
reteve um par de vidas) a instantes de ceder a sua vez à cor verde."
A celebração reflexiva
do quotidiano operada neste conjunto de poemas não é linear ou sequer uniforme.
Bastas vezes a denúncia se acerca destes escritos, seja para dar forma à
discriminação para com os mais velhos - bem evidente no combate à pandemia - ou
a invocar a mediocridade, através da recorrente figura do execrável sr. Lopes."
JOSÉ MÁRIO SILVA, Expresso, 27.1.23
ABERTO TODOS OS DIAS
"Alguém tem de amar / o
banal. Alguém tem de tratar disso." Eis uma espécie de caderno de
encargos - atenção máxima às coisas mínimas, com fugidio lirismo - a que João
Luís Barreto Guimarães se entrega com júbilo, subtileza, ironia e
sentido lúdico (sem esquecer a habitual abundância de parêntesis, e a
costumeira aparição do Sr. Lopes) num livro frugal e feliz, o primeiro que
publica depois de lhe ter sido atribuído no final de 2022, o Prémio Pessoa."
LUÍS RICARDO DUARTE, Visão - Magazine, 19.1.23
À disposição do mundo
«Não é preciso estar
nomeada, direta ou indiretamente, para a pandemia de Covid-19 atravessar o novo
livro de poemas de João Luís Barreto Guimarães. O contentamento que
percorre estes poemas será facilmente reconhecido pelo leitor como seu. É a
alegria de estar de regresso ao café onde se escreve um poema, de se abeirar da
margem do rio, de lhe ver as gaivotas e embarcações, de poder afirmar, sem
constrangimentos, os pequenos gestos do dia a dia. Mas Aberto Todos os Dias,
que se publica na sequência da atribuição do Prémio Pessoa ao
poeta e médico, é também a celebração da aurea mediocritas defendida
por Horácio nas suas odes. O louvor da vida simples (que, para
muitos, a pandemia também veio revalorizar). Nesse sentido, o
livro divide-se nas quatro aspirações do homem do Renascimento (locus
amoenus, beatus ille, tempus fugit, carpe
diem), decantadas em poemas que buscam um ideal de vida ou a integridade de
cada momento. No seu reverso, também se assume a certeza de que o tempo corre
imparável, sem se repetir. Aberto Todos os Dias convoca
constantemente o leitor (leia-se o poema O Leitor Acaba de Virar a
Página) não para uma intimidade partilhada, mas para o fazer parte da
poesia, aquela que olha para as coisas banais e anónimas, na certeza de que “escrever
é/ fazer existir o que antes não existia”.»
§