POESIA REUNIDA


 430 poemas

(Porto, Leça da Palmeira, Venade e Torre da Medronheira, 1985-2022) 

1ª ediçãoQuetzal, Lisboa, Abril 2023

capa de Rui Cartaxo Rodrigues, a partir de A ruela, de Johannes Vermeer
direcção literária de Francisco José Viegas

 

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Prémio Pessoa 2022

 ACTA DO JÚRI, 14.12.2022

(Francisco Pinto BalsemãoPaulo MacedoAna Pinho, António BarretoClara Ferreira AlvesDiogo LucenaEduardo Souto de MouraJosé Luís PorfírioMaria Manuel MotaPedro NortonRui Magalhães BaiãoRui Vieira Nery e Viriato Soromenho-Marques.)

«João Luís Barreto Guimarães, médico e cirurgião é uma voz inconfundível na poesia portuguesa contemporânea desde 1989, quando publicou o primeiro livro aos 22 anos. (…) Com uma obra vasta que se inscreve simultaneamente na tradição lírica portuguesa, tanto na sua nota histórica como intimista, e numa modernidade europeia e anglo-saxónica, João Luís Barreto Guimarães tem dezenas de livros publicados em Portugal e traduzidos no estrangeiro, na Europa e na Ásia, na América do Sul e do Norte. Nos Estados Unidos foi galardoado com o Willow Run Poetry Book Award, em Filadélfia. Em Portugal, o livro Movimento ganhou em 2022 o Grande Prémio da Literatura. Está representado em variadas antologias e revistas literárias do mundo, com relevo para as de língua inglesa.

(…) João Luís Barreto Guimarães alia à virtude da palavra e da imaginação, uma reflexão por vezes irónica, por vezes realista, sempre duramente trabalhada, sem prejuízo do efeito estético na construção do poema. Homem culto, participante activo da cultura europeia cosmopolita, a sua sensibilidade poética transita da literatura para as outras artes com uma fluidez que não recusa a tinta sentimental ou a demonstração consciente da inconsciência da condição humana (…)»

 

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HUGO PINTO SANTOS, Colóquio Letras, nº 216, p. 170-172, Maio 2024
João Luís Barreto Guimarães - POESIA REUNIDA 

«Os primeiros livros de João Luís Barreto GuimarãesHá Violinos na Tribo (1989), Rua Trinta e Um de Fevereiro (1991) e Este Lado para Cima (1994) — possuem uma especificidade muito própria, que lhes advém não apenas da cronologia, mas de tipologias, modos e conseguimentos diversos da ulterior produção. Em articulação com o primado de formas fixas como o soneto, esses procedimentos possibilitam multivalências de sentido, frásicas e rítmicas, posteriormente mitigadas, ou excluídas — «na cidade do mar hoje é Dezembro / quase Natal quase partilha conheço alguns que têm contribuído / para a construção da Terra (oh peço perdão: desculpem mas / nunca trago trocado comigo)» (13). Podia dizer-se que a ambiguidade e a polissemia, se não eram buscadas, objecto de uma poética, decorriam de uma possível fase de arranque e experimentação — a seu tempo, os volumes seriam reunidos em 3 (2001). Os próprios títulos activam essa noção de estranheza, com associações díspares («violinos» e «tribo»), ou datas inexistentes («31 de Fevereiro»), mas já as acompanhava uma presença assaz concreta: «este lado para cima», como em mudança de casa. Não deixa de ser interessante ver como, após um começo na órbita da forma fixa, surge um livro de poemas em prosa que marca, precisamente pelo seu prosaísmo, novos rumos, os quais, com naturais modulações, se têm mantido: coloquialismo, quotidiano, subtileza e, na sagaz fórmula de Eucanaã Ferraz no posfácio: «um abandono da desmedida em favor da medida» (357). Muito acertadamente, o poeta e ensaísta brasileiro acentua uma nota de extrema importância para a poesia de Barreto Guimarães. Trata-se de uma contenção não sobremaneira formal, mas de um concerto de elementos: dicção, escolhas lexicais, arranjo composicional, mas também a figura, nem sempre esquiva, do sujeito poético. Este posiciona-se perante o mundo de forma deveras peculiar: nem exaltado, nem alheio, mas capaz de ambos os extremos, sem tocá-los realmente. Um eu poético preocupado com o mundo, mas em cauta salvaguarda, que se auto-analisa, não poucas vezes com ironia mais ou menos acutilante, mas que prefere, para retomar a expressão de Eucanaã, a «medida» à «desmedida». A coloquialidade e a pragmática (língua e contexto) não impedem uma espécie de filtro adicional, acrescentado à inevitável mediação entre comunicar e escrever literariamente. Daí que, por um lado, a pulsão dialógica desta poesia não se realize em pleno, redundando, por exemplo, no humor, ou no pastiche: deixa-se em força potencial, valor hipotético — na via em que se (com)fundem os actos comunicantes e o que há de específico no poema, esse dizer que não informa, nem narra; não descreve, nem cria enredos ou personagens — embora roube em cada uma dessas «funções da linguagem». E esse é um dos trabalhos desta poesia: recolher elementos díspares mas disponíveis, porque oriundos do quotidiano e — à falta de outra palavra — da vida, e transformá-los, não em instâncias de uma transmissão taxativa de dados, mas num transpor dessa matéria em substância de outra ordem, a que poderíamos chamar poética. Por outro lado, naquele que é, porventura, o melhor poema de Poesia Reunida, sintomaticamente intitulado «Éléments impurs», escreve Barreto Guimarães: «Mantenho uma distância segura do / que chamam realidade (disperso vendedores de rosas / como quem dispensa ilusões)» (310). Pode objectar-se que o simples conjunto de versos nem sequer é especialmente significativo da integralidade do poema; no entanto, aquela sequência configura uma das súmulas possíveis para a poesia do autor. Desde logo, a presença inegável do mundo, a subentendida primeira pessoa, prumo da enunciação, mas logo termos como «distância» e «segura», além do próprio itálico em «realidade», criam uma divisória entre sujeito e objecto. Por outro lado, uma notação como «vendedores de rosas» surge de pronto a reforçar o apego ao concreto, para de imediato se erguer uma força de bloqueio, de negação sub-reptícia. Já não se está nos considerandos de mundo, sujeito e objecto, mas em plena linguagem voltada para si, e a aparente inocência dos termos oculta uma operação subtil, mas que faz o corte. A presença quase contígua das formas verbais «disperso e «dispensa» aplica um recurso habitual nesta poesia: a paronomásia com jogo de palavras e sentidos. Os verbos não apenas se parecem, mas «dispensar», por si só, mescla o sentido de «prescindir» e «oferecer». Trata-se de uma distinção que, se aparenta indiferença, pode, na verdade, ter algo a dizer. Repare-se: não quer o sujeito do poema ilusões, ou dá-las-á a quem as pretenda acolher? O poema não resolve o impasse; contudo, não deixa de o integrar e fazer usufruto. Note-se ainda que a composição é retomada, em ténues variações — outro processo habitual no poeta —, e que essa reescrita se rodeia de um enquadramento típico dos seus processos. Os ritmos do tempo, a sucessão das estações, ou dos segmentos de um dia, as infinitesimais mudanças detectáveis através dos objectos menores, dados dos sentidos e do pensamento, a rotação imprecisa, quase indetectável, que é a «máquina do mundo» possível — «Lentamente / a cidade aceita a escuridão. É uma batalha perdida (a / da luz contra o negrume)»; «Conversamos na cozinha (uma só / sombra no / chão)»; «Cada um de nós começou com uma / vitória sobre o nada» (ibid.). A pequena escala dos brevíssimos acontecimentos, o diagrama imaginário do tempo, a possibilidade de guardar o que foge sem remédio. Seria tentador dizer que é pouco português o olhar do poeta. Há certamente amplos argumentos a favor dessa ideia. Se relermos as palavras inaugurais de Poesia Reunida — «estamos dentro dos dias» —, seria difícil não pensar em Philip Larkin (que não tardará a ser citado e mesmo referido) e em «What are days for?» 1. Mas logo nos surge a dedicatória «a meus pais», em sentido contrário ao mais célebre verso de Larkin: «They fuck you up, your mum and dad.» 2 Por certo, a acidez depressiva, a acre melancolia do autor de The Less Deceived têm menos que ver com Barreto Guimarães do que poderia supor a vã filosofia de um repente; e, no entanto, algo existirá daquele poeta inglês, apegado como poucos ao dúbio cantar do viver concreto, turbado por cíclicas vagas de negrume, mas capaz do mais perfeito equilíbrio de forma, a prosódia menos afectada e revolta, no seu ângulo ligeiramente oblíquo de encarar coisas, actos e gentes. O que fica é, eventualmente, um vestígio da retraída compaixão, a embaraçada solidariedade de quem assim especula: «não saberem se são / incompletamente / infelizes». As «empregadas fabris» (118) do poema são nomeadas de modo quase impessoal, entre parêntesis, como em respeito a uma privacidade que se quase invade, mas que não quer devassar-se. Este olhar pertence a quem é capaz de resumir o caos — «o mundo / desarrumado» (291) — em vez de o escalpelizar. Quem opta, tão frequentemente, pela civilidade da súmula — «a vida não melhora mais do que isto» (278) — em detrimento da crueza do exame (sem esquecer o quanto a linguagem médica permeia tantos destes versos, em declinação autobiográfica, ou sob efeito, narcótico ou excitante, da ironia). Poesia atenta ao passar do tempo, ela não deixa de o modular de acordo com distintos ângulos e marcas distintivas de uma linhagem. Poemas como «dia de Saturno» (281) ou «dia do sol» (286) são ligeiros acenos à nomenclatura da «semana inglesa» — título de um poeta, Vasco Graça Moura, que partilha com Barreto Guimarães, e com António Nobre, o galardão mítico de Leça da Palmeira — e, por consequência, a um quadro cultural de referências e adesões. A influência dessa possível linhagem é debatível, mas não há como recusar o reconhecimento, o pressuposto, a afinidade, no tom e na economia, desta poesia com as «atitudes anglo-saxónicas» que, sem dúvida, desempenham um papel na sua formação. Poesia Reunida acolhe cerca de três décadas e meia de obra publicada. É de um olhar informado que se trata: informado pela leitura e a vida, a meditação e a escolha, a filtragem das fontes e a decantação do que fica depois de contas feitas, depois de terminado o dia.» 

1 Verso do poema «Days» de Whitsun Weddings (1964), infelizmente não presente na admirável Uma Antologia, trad. Maria Teresa Guerreiro, posf. Joaquim Manuel Magalhães, Coimbra, Fora do Texto, 1989.

2 Do poema «This Be the Verse», de High Windows (1974) («Fodem-te o juízo a mamã e o papá», «Seja Esta a Rima», Uma Antologia, ed. cit.). 

 

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MARCELO REBELO DE SOUSA, cerimónia de entrega do Premio Pessoa, Culturgest, 17.4.23 

«Galardões como o Prémio Pessoa – e não há muitos, se é que há algum, como o Prémio Pessoa – podem servir para homenagear personalidades que se tornaram uma evidência, ou que nos aparecem, sobretudo se estivermos distraídos, como uma surpresa. Um pouco como na política se fala de “senadores” e de “promessas”, categorias que aliás nem sempre se medem por um critério estritamente etário. Se há jovens senadores nas artes, na cultura, na ciência, no pensamento, também há promessas que estão “a meio do caminho da sua vida”. O que chama imediatamente à atenção, não tanto em João Luís Barreto Guimarães, mas na escolha do Júri, é o facto de se tratar de um poeta, e de, sendo uma evidência para quem está no mundo da poesia, o não ser para quem está de fora. Claro que o prémio já tinha sido atribuído a António Ramos Rosa e a Manuel Alegre, para não falar de Herberto Hélder, que não aceitava prémios, mas toda a gente conhece Manuel Alegre, e quase toda a gente tem uma ideia, concreta ou difusa, de Ramos Rosa e Herberto, de poemas seus ou características suas.

Ora, desde 1989 que as pessoas que acompanham a poesia portuguesa de hoje conhecem João Luís Barreto Guimarães, e nos últimos anos a sua atividade literária alcançou outro patamar de visibilidade e reconhecimento, até internacional – os Estados Unidos da América que o digam –, mas podemos admitir que não se trata de um nome, como se diz, “evidente” ou mesmo que se tratou, para muitos, de uma “surpresa”. Aliás, a família quando eu perguntei à entrada como tinha reagido ao Prémio disse foi surpreendente. Como se fosse surpreendente para quem convive todos os dias com o premiado aquilo que é de uma justiça evidente e linear. 

O conhecimento da sua poesia desfaz a surpresa. Porque há mais de três décadas que Barreto Guimarães é o melhor que se pode ser em literatura, ou seja, parecido sobretudo consigo mesmo. Houve quem lhe notasse afinidades geracionais, um certo tom, quotidiano ou lúdico, que também encontramos noutros possíveis vencedores deste e doutros prémios, como Jorge Sousa Braga ou Adília Lopes. Mas a sua singularidade, que, entretanto, se acentuou e diversificou, é congénita. Se vem da “poesia da experiência”, da sua experimentação formal, do registo dos dias e dos afetos, do jogo com as palavras, a obra do nosso premiado evoluiu, à medida que a idade avançava e o mundo mudava, para a elegia, a meditação europeia, as pequenas e grandes tragédias pessoais e comunitárias, o estoicismo, sem esquecer, claro, a vida da poesia. E, sempre, essa noção de espaço e de tempo, que nos faz inapelavelmente nómadas, e a vivermos eras que se sucedem, irresistivelmente, para que o que foi possa abrir caminho ao que vai ser.

Nas suas palavras “E aqui estamos (tu e eu) nómadas neste rio sagrado onde um primo nosso afastado (alguns 30 mil anos) deixou picotado em pedra num mágico altar de xisto este casal de cervídeos (se não em pose ousada para o que deve um santuário pelo menos dando a ideia de estarem ali naquilo já desde o Paleolítico). Homo sapiens apenas no belo Museu do Côa: duas ou três invenções são desde ontem notícia (isso de termos logrado o fogo domesticado usarmos linguagem falada criarmos belas artes com signos). Longa migração para norte desde o Quénia até aqui - podia falar um pouco desse lento despertar …”. Noutras palavras suas também “Na manhã do temporal saímos a medir estragos (repor pedras nos muros colher gravetos do chão). A fúria da natureza volveu a ordem anterior como marca de um excesso quando no dia seguinte olhas melhor e percebes o equívoco da noite anterior. Da força da tempestade só sobrou dor e silêncio (aos pés de um pinheiro-manso, céu e terra derrotados: um rato e um pardal são a memória visível da cega devastação) como se um recomeço apenas fosse possível caso entre etéreo e terreno ambos ousassem perder. Um Deus ajusta o equilíbrio destruindo o que criou - alguém tem de morrer cedo para que outrem possa sobreviver”. 

Na recentemente editada “Poesia Reunida” encontramos, para citar dois títulos de livros, os nossos “Lugares Comuns”, quer dizer, os lugares que nos são comuns a todos (lugares sítios e lugares de acontecimentos), e um “Você Está Aqui” que funciona como indicação topográfica, viajante e como certificação existencial daquilo a que os filósofos chamam “o estar no mundo”. Longe de ser um poeta monotemático, ou monocromático, João Luís Barreto Guimarães é autor de uma obra poética que abrange nas palavras de outro grande contemporâneo, Eucanaã Ferraz, “anotações do vivido (…) nas quais ressoa tanto a intimidade do diário quanto a arqueologia e a história das civilizações”. Veja-se como, no último livro de originais “Aberto Todos os Dias” é o mundo que está aberto todos os dias, e os poetas abertos ao mundo, sendo aqui “poeta” um sinónimo um pouco mais intenso da palavra “humano”, ou da palavra “pessoa”. 

Se o volume da obra poética é por natureza uma soma e uma súmula, em “Aberto Todos os Dias” temos um instantâneo da poesia de João Luís Barreto de Guimarães em 2023, ano em que o Júri justamente o distinguiu. A estrutura do livro com os preceitos renascentistas de “locus amoenus” temperança, consciência da fugacidade e “carpe diem” representam, não direi o chamado “estilo tardio”, porque se trata de um poeta ainda jovem, mas uma poesia da maturidade pessoal e poética, talvez hoje mais sofrida do que antes, mais vasta nas suas preocupações, mas sempre atenta ao poema como artefacto, ao poema não hermético, porque matéria humana que não se interessa a todos, uma vez que todos dela fazemos parte. Nessa medida, o Prémio Pessoa 2023 não foi atribuído apenas à obra poética de João Luís Barreto Guimarães, mas também, se é que há diferença, ao poeta Barreto Guimarães. Um homem cuja consciência poética se exprime nos seus livros, naturalmente, mas também na tradução e divulgação de poesia contemporânea, convicto que está de que a poesia nos dá indicações decisivas sobre a nossa condição atual e intemporal, ou na recuperação de uma ideia de médico (que ele também é) que se manifestou, mas já hoje aqui falada, na muito noticiada cadeira de introdução à poesia dirigida à estudantes de Medicina. Uma ideia do médico enquanto humanista, cultor das Humanidades e seguidor do mote clássico de Terêncio, que disse aquilo que os médicos e os poetas bem sabem: “nada do que é humano me é estranho”.» 

 

PAULO MACEDO, cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, Culturgest, 17.4.2023 

«“Estes lamentos / Dos violões lentos / Do outono / Enchem minha alma / De uma onda calma / De sono”. A poesia serve, a propósito e a despropósito, para tudo um pouco. Mas as estrofes que citei, a abrir, de Paul Verlaine, tiveram uma função libertadora muito particular. Foram essas palavras que serviram de senha ao Dia D, em 6 de junho de 1944. A tradução que usei é, por sinal, de Manuel Bandeira, um grande poeta brasileiro. Palavras, libertação e poesia. Um encontro perfeito. 

Em trinta e seis edições de Prémio Pessoa é a quarta vez que um poeta é distinguido. Um poeta que é médico. Confesso que sempre me fascinou a capacidade dos médicos em se adaptarem a tantos e tão diversos terrenos. Temos, ou tivemos, médicos-arqueólogos, médicos-historiadores da arte, médicos-tenores, médicos-músicos, médicos-pintores, médicos-apresentadores de televisão etc. Médicos-políticos, seguramente. Essa visão tão próxima da vida humana, das suas fragilidades, da sua intimidade, dá-lhes seguramente alguma vantagem na leitura do mundo em volta. Ser médico com uma especialidade em cirurgia plástica, reconstrutiva e estética parece-me desafiador. É provável que o Dr. João Luís Barreto Guimarães discorde do que digo, mas vejo na sua especialidade um toque poético, pela capacidade transformadora que cada gesto comporta. 

Não esqueçamos o início lapidar de um conhecido soneto de Florbela Espanca: “Ser poeta é ser mais alto…” Recordando o que nos diz António Feijó estamos ante o “difícil problema de saber o que explica que um autor tenha sido acolhido no conjunto de autores” da sua área. Ou seja, como é que é feita essa cooptação. Talvez porque traga algo de novo e de diferente. Aquilo que António Feijó refere como “uma capacidade de articulação expressiva inédita, um aumento de possibilidades expressivas”. Talvez porque, como escreveu Clara Ferreira Alves, quem escreve tenha trazido algo de novo e de diferente. Cito, desta autora, “é preciso prestar atenção a todas as coisas que acontecem pela primeira vez. Não só as que acontecem pela primeira vez nas nossas vidas. A todas as coisas, as que acontecem fora das nossas vidas e dentro de outras vidas”. 

João Luís Barreto Guimarães está dentro dessa diferença e dessa originalidade. O homem, o poeta, a quem hoje entregamos este Prémio tem uma carreira longa nas letras. Mas desculpem-me desviar um pouco dos prémios e das distinções e das comendas. Uma das coisas que me chamou mesmo a atenção no percurso do Prémio Pessoa deste ano é o facto de lecionar “Introdução à Poesia”. Na Faculdade de Letras? Não. No Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. A cadeira tem o título de “Introdução à Poesia”. Depois, entre parêntesis, para estudantes de Medicina. Nos objetivos da cadeira lemos coisas como: Como ler um poema: ideias e técnicas para entender a forma e o género poético. Ou ainda: Como funciona um poema: técnica poética e ofício da escrita. Mas também: Leitura: como analisar um poema em profundidade e expressar ideias de forma eficaz. Não sei se outras faculdades seguem este caminho. Mas eu diria que a Poesia nos é necessária. E que uma visão poética da realidade nos dá outra perspetiva do quotidiano e do mundo à nossa volta. O próprio João Luís Barreto Guimarães o sublinha. Não é por acaso que o título da sua entrevista ao “Expresso”, depois do anúncio do Prémio Pessoa, tenha sido “O poeta contemporâneo não pode ser autista da sua própria sociedade”. O programa da cadeira que leciona é fascinante e inclui uma diversidade que vai dos símbolos, dos mitos e dos arquétipos ao rap e ao blues. A palavra e o som estão sempre presentes. Como afirma o próprio, “ [a sua reflexão] quer expressar o mundo global. A multitude de vozes e línguas que constituem a poesia europeia e a poesia anglo-saxónica nos dias de hoje”. 

Há cerca de 7.000 línguas no mundo e jamais dominaremos toda a espantosa diversidade de todos esses sons. Mas é decisivo que se queira ter, como o nosso premiado tem, uma visão que saia das fronteiras da Lusitânia e que se queira afirmar como europeia. Ou seja, estamos ante alguém que se considera um poeta europeu e não meramente um poeta nacional. Respondendo por uma tradição que não é só a portuguesa, embora não a renegue. Não vou enumerar toda a vasta lista de publicações, de prémios, de traduções, de reconhecimentos de vária ordem que João Luís Barreto Guimarães tem tido. Tiro partido de uma expressão sua, numa entrevista a um jornal, quando disse “o que mais me interessa é falar do presente volátil, do agora”. É uma história que nasce de uma lição que julgo ter aprendido com João Miguel Fernandes Jorge: a que mistura a mitologia individual com a mitologia coletiva”. 

O Mediterrâneo está na linha do horizonte de muitos dos seus textos. Mesmo procurando inserir a sua obra no contexto da poesia europeia contemporânea e anglo-saxónica, muitas das paisagens estão a sul. Tem um poema, com o título irónico de “Pode ser Pepsi?”, onde, à declaração de “gosto dos frescos de Pompeia em dias de mais calor” junta a declaração, de sentido político, “Não gosto do Mediterrâneo transformado em cemitério”, para depois tornar à ironia dizendo “Distingo liquidez dos bancos da liquidez de teus olhos”. Ao Mediterrâneo torna em “Sicília”. Domina o meio ambiente, os damascos, os figos, as oliveiras, os limões, os ciprestes. Podemos fazer do sul o nosso norte. Mas regressamos sempre ao ponto de origem. O Porto e Venade (perto de Caminha, no Alto Minho) são esse regresso às origens. Pode ser erro do leitor que sou, mas foi nessas paisagens que pensei quando li “Sol de Janeiro”: “Nunca tanto como hoje reparei com atenção na luz do sol de Janeiro. Forte mas delicada. Furtiva mas demorada. Não arde nem faz tremer. Não é densa nem clara”. É um regresso ao Portugal Atlântico das origens, mais longe dos ambientes meridionais. Tudo é relativo, claro. Há anos num documentário sobre a Europa do Sul, a cidade que se mostrava era o Porto. 

Só posso desejar que aquilo que quer se concretize. Como disse na já citada entrevista ao “Expresso”: “Estou desejoso de que tudo isto passe e que eu volte aos caderninhos, às canetas, à minha mesa de café, volte à matéria-prima, e continue a desafiar-me a mim próprio para criar objetos originais”. Que assim seja, claro. Como é bem sabido, este Prémio não é só de consagração. Ou melhor, consagrando e reconhecendo uma carreira, é também um prémio de estímulo para que os galardoados vão ainda mais além. Espero que já tenha regressado aos cadernos e às canetas e à matéria-prima. Vivemos hoje ofuscados pelas novas tecnologias. As novas tecnologias têm muita coisa, mas ainda não têm Alma. É por isso também que posso garantir que este discurso – que é um discurso de agradecimento, antes de mais – foi escrito sem o recurso à inteligência artificial e ao Chat GPT. Muitos parabéns, Dr. João Luís Barreto Guimarães.» 

 

FRANCISCO PINTO BALSEMÃO, cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, Culturgest, 17.4.2023 

«(...) Penso sinceramente que, mais uma vez, o Júri do Prémio Pessoa, ao qual tenho a honra de presidir, cumpriu a sua missão: “distinguir anualmente, a pessoa de nacionalidade portuguesa que, durante esse período e na sequência de uma atividade anterior,  tiver sido protagonista de uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do país.” O 36º Prémio Pessoa vai ser formalmente entregue por Sua Excelência o Presidente da República, neste magnifico anfiteatro da Culturgest, a João Luis Barreto  Guimarães. 

O nosso premiado tem conseguido percorrer, ao longo dos seus 55 anos de vida, dois percursos bem diferentes: é médico, especialista de cirurgia plástica e reconstrutiva, e é poeta. Os dois percursos terão começado praticamente ao mesmo tempo, pois o primeiro livro de poesia é publicado em 1989, tinha então o autor 22 anos. O Pessoa 2022 – e é o quarto poeta a ser distinguido – é-lhe atribuído, entre outras razões, pela sua obra vasta que se inscreve simultaneamente na tradição lírica portuguesa, tanto na sua nota histórica como intimista, e numa modernidade europeia e anglo-saxónica. Barreto Guimarães tem dezenas de livros publicados em Portugal e traduzidos no estrangeiro, na Europa e na Ásia, na América do Sul e na América do Norte. Nos Estados Unidos foi, aliás, galardoado com o Willow Run Poetry Book Award, em Filadélfia. 

Mas, acima de tudo, o nosso laureado escreve sobre nós, portugueses, e escreve sobre tudo o que vê e o que observa, o que sente e o que pensa, e escreve sobre o outro com uma atenção permanente. Permitam-me que vos leia este pequeno poema que escolhi – e a escolha não foi fácil – entre muitos outros: “Ele fazia poemas. Os outros / passavam ao largo / (fugindo a qualquer pergunta) / ele nem sequer escondia o que ali estava / a fazer. Ali / à frente / de todos. Linhas e linhas / escritas. Não se limitava a ler. / Não se limitava apenas a viver / A sua vida. / Sei muito bem o que digo. Aquilo eram / poemas. 

É uma poesia pura, simples, mas também uma poesia que alia a sensibilidade à inteligência. E, já que falamos de inteligência, termino revelando-vos que fui consultar como está Barreto Guimarães cotado no mundo da Inteligência Artificial, onde cada vez mais nos condenamos (ou estamos condenados?) a viver. (...)» 

 

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