42 poemas
(Leça da Palmeira,
Venade e Torre da Medronheira, 2015-2018)
1ª edição, Quetzal,
Lisboa, 2018, esg.
capa e fotografia de Rui Cartaxo Rodrigues
direcção literária de Francisco José Viegas
2ª edição, Quetzal, Lisboa, 2019
3ª edição, in «Poesia Reunida», Quetzal, Lisboa, 2023
Prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand
Prémio Literário Armando Silva Carvalho
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DANIEL RODRIGUES, Colóquio/Letras, nº 200, Janeiro-Abril 2019
NÓMADA
«Composto por seis partes de sete poemas cada, Nómada é o [décimo] título da obra do poeta João Luís Barreto Guimarães, sucedendo a Poesia Reunida, de 2011 e Mediterrâneo (2016), vencedor do prémio António Ramos Rosa.
A cartografia traçada em Nómada é submetida à ação do tempo e da memória, criando uma geografia pessoal, evocada no poema que empresta o título à recolha: «É preciso conhecer os mapas / mais ao acaso / (jamais evitar fronteiras / nunca ficar pra trás)». Este espaço-tempo configura a poética do portuense, como já assinalou a crítica sobre os livros anteriores. Apesar de cidades estrangeiras atravessarem a obra, de Paris a «lugares com nomes / imprønünciåveis», passando pelo campo de concentração de Birkenau, o nomadismo que se desenha ao longo dos poemas não é somente composto por deslocamentos territoriais. O sujeito nómada também atravessa o tempo, criando, como na lição de Deleuze e Guattari, «uma outra justiça, um outro movimento, um outro espaço-tempo». Este outro espaço-tempo ora desliza prosaicamente com o sujeito poético, «Transporto comigo este dia como / a sola do sapato transporta uma pastilha elástica», ora se congela no contato do ser amado – «O que encerras num abraço quando / abraças alguém não é / um corpo: é tempo. [...]» ou como em «Nómada»: «Só o amor pára o tempo». Aliás, o amor parece ser a única força capaz de extrair-se da dimensão temporal.
Força maior, ele reaparece também como memória poética em «Epithalámion», «o que será o amor senão / dor de um fogo posto?», onde reconhece-se facilmente a subversão do tópico camoniano. Contudo, a memória sublinha sempre o ato da enunciação poética que diz o hoje: «O amor não é mais / que o presente (um presente absoluto)». No sexto poema da primeira parte, «Dedos Manchados de Tinta», o amor chega mesmo a erguer-se como possibilidade única de eternidade: «só porque está em ruínas o templo de / Afrodite não quer dizer que não / haja amor». A relação entre o efeito devastador do tempo e a força do amor é novamente evocado no último poema da recolha, intitulado «Moral da história», onde os dois antagonistas se reúnem num só espaço, «a mesma exacta laje» do altar: «Há decerto / uma moral oculta na sugestão de que Eros / e Thanatos / frequentam os mesmos círculos mas / qualquer que seja – / a vida / não melhora do que isso». O tempo de habitação no mundo, «a vida», corre assim em outra dimensão, alimentando-se simbolicamente da mitologia evocada nos poemas, transformando-a também, isto é, dando-lhe a medida humana, o espaço-tempo da viagem do sujeito nómada.
Se uma certa tonalidade disfórica atravessa a obra, denunciando promessas que o tempo não realizou, há também sobrevivências de prazeres que emergem como «um resto de champanhe que fica / para o dia seguinte / (se lhe falta alguma força / ainda conserva o sabor)», como lemos no poema já citado «Dedos manchados de tinta».
Assim, Nómada constrói-se em torno da transformação
do tempo em substância poética e podemos notar três estratos temporais que se
confrontam: o quotidiano, o tempo biográfico e a história. A tensão entre os
três dá corpo a pequenas narrativas, traço que também já foi assinalado pela
crítica como característica da obra do poeta. Desde o início, em
«Prelúdio», o tempo cristaliza-se como matéria-prima, em escrita negra sobre
o papel, para logo após encarnar na forma de sensações que sublinham as
«coisas comuns».
O quotidiano é, assim, evocado através das diversas formas do sentir, e é pela sensação que este passa a ser abertura, questionamento do mundo. A poesia do tempo presente é sempre acionada por sensações que surgem enquanto surpresa do não saber, «Fazer poemas é como ir / roubar / maçãs selvagens – / vais à espera de doçura mas / surpreende-te a acidez.», ou enquanto um real prosaico estranhamente familiar, como no poema inicial onde o odor revela a verdade do mundo: «E a que cheira o novo dia? / Por ora a batata frita».
Como se trata de captar o tempo presente, muitas vezes a fotografia é evocada. Em «Autorretrato (aos cinquenta)» o sujeito poético parte da sua experiência corpórea, «Esta dor que hoje sinto / ontem não estava ainda», para projetar-se no coletivo, «Os meus amigos telefonam para / queixar-se da doença (com o entibiar dos dias / todos vão / perdendo peças)». O poema retoma o autorretrato poético, já trabalhado em Você está aqui (2013) com o «Autorretrato (aos quarenta e cinco)». Cinco anos depois, os parênteses utilizados no título permitem que o poema escape ao subjetivismo, fazendo da experiência do eu o testemunho de uma geração. Notemos, porém, que estes símbolos gráficos surgem como técnica em todos os poemas, como turbilhões que inserem o sujeito nos poemas-narrativas. Eles sugerem assim um território de errâncias e de acasos; são como fronteiras traçadas, para logo em seguida serem atravessadas, como em «Os corvos em Birkenau»: «O madeiro dos barracos / (onde os mantinham à espera) / não resistiu às estações.». Os parênteses criam também diálogos com o leitor, abolindo a distância entre as instâncias comunicativas, como em «Movimento do mundo»: «Eu errava pelo mundo e / (escuta: / era engraçado) quanto mais errava mais / estava certo (a / própria vida parecia que me queria / preso a si).». Muitas vezes, podem também ser espaços onde os ritmos e a sonoridade do poema se enriquecem, como em «O cheiro do corredor», texto em que o odor do hospital lembra a experiência de médico do poeta, sublimando-a através do ritmo criado pela repetição da consoante explosiva: «As cadeiras de plástico (polidas e / pacientes) aceitam familiares», ou através de elipses que reconstroem versos inteiros: «O medo bebe um cigarro / (fuma o terceiro café)».
No segundo poema em que a imagem fotográfica é convidada, «Nas photografias de outros», a técnica do retrato liga-se ao acaso, multiplicando o eu ao infinito: «Estou presente no passado de vidas que desconheço (homens que rumam a norte / mulheres que descem a sul) em / photos / que me prenderam a cidades estrangeiras / [...] / Noutras / estou invisível mas sou eu por todo o lado –». Já em «A solidão dos homens cansados», a sensação de cansaço do eu dialoga com o autorretrato para, mais uma vez, escapar ao subjetivismo, agora pela despersonalização do sujeito: «A / cada dia que passa me sinto mais fatigado. Um / homem procura ternura / no seu regresso a casa (um / homem não vê o instante em que despe / o ultraje) quando / sai de pés descalços pelo soalho da tarde em / busca de um copo de olvido».
Por conseguinte, a posição do nómada, que insiste em habitar o presente, faz com que este se torne testemunha de um tempo pobre. Vale notar que muitos dos poemas têm como primeiro verso uma só vogal, figurando iluminuras empobrecidas, esvaziadas de adornos. Este testemunho leva o leitor a posicionar-se, ele também, criticamente face ao presente. Como em «A hipótese do cinzento», quando a radicalização da situação política e social da atualidade faz com que, ironicamente, o poeta comente a conformidade de uma sociedade que desistiu de afrontar os seus problemas: «Num país a preto e branco / recomendaram-me o cinzento / [...] / [...] Com a paleta dos cinzentos poderia / aprimorar a arte da sobrevivência que / (como os mansos bem sabem) é / não estar vivo / nem morto». Esta posição de resistência constrói, junto a força do amor já citada, um lugar onde pode habitar o poeta, como em «A título de exemplo»: «Nada contra / os que quebraram / fui alguém que resistiu – / quando julgarem-me morto / vou-lhes tomar o país».
A obra também põe em relevo a relação do sujeito com o passado. Materializada em ruínas, esta relação surge como uma montagem de tempos heterogêneos que se confrontam e revelam, uma vez mais, o desconcerto do mundo. Em «As paredes em falta», a destruição traz à tona a perversidade dos interesses financeiros, mas é justamente a ruína que oferece ao sujeito uma rota de viagem para criar outro espaço-tempo: «Nos / prédios bombardeados (por exemplo nos Balcãs) / é fácil de figurar as celas / em que vivemos. Blocos altos sem fachada / (desde os dias da guerra) / tornam-no mais evidente: quartos cúbicos / exíguos / aos quais falta uma parede – / essa que dá para a fuga / que mostra a liberdade. [...]». As cidades atravessadas pelo sujeito nómada, que se opõe à estratégia capitalista, são também atravessadas pela memória que guardam o suicídio de Paul Celan no rio Sena, as torres gêmeas em Nova Iorque, os jogos olímpicos nas ruínas gregas. E a posição crítica do sujeito não se manifesta apenas pela denúncia, podendo ser revelada pelo humor, como em «O nome dos batoteiros», quando a visão da «ala dos batoteiros» na Archaia Olympia o faz dialogar com o leitor: «a quem não apraz a ironia com que o tempo / fez justiça / (essa má eternidade com que ficam na memória) / o elogio ao contrário com o qual / entram na história?».
Este nomadismo temporal traça, ao longo de cada uma das seis partes, um tratado sobre o presente, com a consciência de que o passado ainda se manifesta nos estímulos que tocam o sujeito nómada, a tal ponto que este último se torna o suporte onde se inscreve os fluxos temporais, « [...] O tempo é implacável: crava / esses riscos na pele apenas / para castigar / eu ter desleixado o gesto que lhe dava existência», sem que a cartografia destes fluxos, o mapa desta viagem, ultrapasse o espaço da vida quotidiana, posto que, como lemos nos últimos versos já citados do poema final: «a vida / não melhora mais do que isto».»
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO, Gazeta das
Caldas, 16.11.2018
"Nómada"
«João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) assina nos seus livros de poemas desde 1989 ("Há Violinos na Tribo") uma muito própria espécie de cartografia poética do "eu" e do Mundo. O seu ponto de partida é o "eu" como no poema "Autorretrato (aos cinquenta) ": " A doença anda aí (rondando os da minha idade) / não sei o que tem esta idade que / tanto apraz à doença / (mesmo aqueles que a vencem ficam / com o corpo avariado) ". À volta do "eu" prospera o Mundo e a sua "A hipótese do cinzento": "Num país a preto e branco / recomendaram-me o cinzento. Um recurso / extraordinário. Com a hipótese do cinzento poderia ensaiar soluções inusitadas - / experimentar o morno (...) explorar o lusco-fusco (...) praticar a omissão (...)". Este é o Mundo (por exemplo) do "Sr. Lopes" e do "filho do Sr. Lopes" (...) no qual ambos dizem o mesmo por outras palavras: "poetas é gente que só pensa / gente que não faz mais nada". Tal como a empregada doméstica da Quinta de Vale de Lobos falando do senhor Alexandre Herculano: "o senhor passava o dia a ler e a escrever, era um mandrião."
Um belo livro que oscila sempre entre o coloquial ("Pelas duas da manhã o gato leva-me à cozinha para me dar de comer") e a filosofia, entre a canção e a reflexão, entre a superfície e o fundo: "Só o amor para o tempo só nele perdura o enigma (lançar pedras sem forma e o lago devolver círculos) ".
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ, Jornal de Letras,
24.10.2018
Sem mácula, com mágoas
«Quando se diz que determinado livro é o melhor livro dum autor, o que se pretende, de facto, sublinhar? A diferença de estilo relativamente a outros anteriores? A visão de mundo, agora mais densa e aprofundada? A capacidade de construir uma linguagem – uma sintaxe, uma semântica – que desafia o leitor a descobrir nesse autor uma voz outra, uma diferença de temperatura (a metáfora de Ruy Belo é sempre instigante) se comparado com outros autores da mesma geração ou outros momentos da própria obra? No caso de João Luís Barreto Guimarães este novo livro, Nómada, corresponde ao momento mais alto desta poesia, não exactamente porque haja uma evolução da temática – um alargamento dos temas que configuram um universo de obsessões, de reiterações, de ideias (Jacinto do Prado Coelho é quem melhor esclarece a noção de tema e motivo a partir das definições iniciais de Ernest Robert Curtius) – mas porque, a partir de uma visão do mundo marcada pela ironia amarga ou pela nostalgia complacente, os temas de sempre desenvolvem-se com uma sageza e uma tensão inesperadas.
O título é, de resto, sintomático: “nómada” é a poesia que aqui se grava; nómada na sua rima interna (magistral lição de ritmo e rima no belíssimo poema “Autorretrato (aos cinquenta) ”; nómada na métrica escolhida, isolando artigos definidos que são curiosos ou excêntricos incipit; nómada porque os poemas são as fotografias onde o leitor poderá ver cenas da História (“Os corvos em Birkenau”: Os / vagões que aqui chegavam / partiram para outros lugares. O madeiro dos barracos / (onde os mantinham à espera) / não resistiu às estações. […] / As próprias câmaras de gás (hoje / um monte de ruínas) podiam passar a ideia de / que nada se passou. Mas eles / já vestem de negro para não deixar esquecer. […]”), para além do sábio uso de orações parentéticas que funcionam como apartes a uma voz central que comanda o discurso. Alguns momentos de intimidade entre a voz que escreve e o olhar que vê, há nesta poética certos saltos de sentido que agudizam a interpretação dos factos, fazendo do texto o lugar de uma coloquialidade distanciada, atento à minúcia da construção poética como arquitectura, coisa a engendrar-se.
O poeta sabe equilibrar a descrição realista com a inquirição de estados de alma sem que o poema corra o risco de cair em solipsismos ou em exposições comprometedoras. A estratégia que reclama é a da citação, ou a da paráfrase, num universo de referências onde a poesia continua a ser fiel a uma elegíaca expressão de si mesma: “Hoje seria / um mau dia para Celan se suicidar. / Demasiados turistas. Meia Paris veio ver as / águas altas do Sena e há muita agitação / (escassa privacidade) difícil / pensar a questão como a colocou / Camus se / cada vida humana merece / (ou não) ser vivida. / A resposta está à vista. A resposta está / no rio. Hoje é / o próprio Sena que tenta a vida cá fora e / quer experimentar as praças” […]. O que ressalta desta dicção ora irónica, ora merencórica, é o trabalho exercido ao nível do verbo, elipticamente tratado. A sustentar a personificação dum espaço (Paris), a hipotipose (“veio ver”), e um parêntese onde o comentário sobre a “escassa privacidade” logo se precipita para um arrazoado – uma cadeia lógica em que os elementos de ligação se eliminam – sobre a questão de Camus e do problema central da vida humana, tal qual anunciado no célebre O Mito de Sísifo, o suicídio.
Barreto Guimarães tem – dissemo-lo já – um alto momento de poesia nos textos onde a inquirição sobre si própria se tece de um rigoroso fabrico versificatório. O sujeito como que pondera as armas a usar para se retratar; e “retratar” no duplo sentido – fazer o seu retrato, desenhar a sua figura e procurar, em clave irónica ou não, a redenção: “A / doença anda aí (rondando os da minha idade) / não sei o que tem esta idade que / tanto apraz à doença / (mesmo esses que a vencem ficam / com o corpo / avariado). Esta dor que hoje sinto / ontem não estava ainda / (vai procurando um lugar como / quem desafia a paciência) / qual figura de xadrez passando daqui / para / aqui. Os meus amigos telefonam para / se queixar da doença (com o entibiar dos dias / todos vão / perdendo peças) / quem de nós nunca morreu que atire / a primeira terra.”
Tal como exige a gravidade do tema, para além da sugestão e ecos da tradição (quem nunca fez determinada coisa, que atire a primeira pedra), é o próprio texto que, verso a verso, saltando dum “aqui” para um “ali”, ou vice-versa, vai também, como corpo verbal, “perdendo peças”. Palavras, sintagmas, nós que articulam o pensamento (conjunções, locuções), perdem-se, evolam-se. A escassez de cada uma das partes participa dessa estética da perda, desse modo de um texto, como máquina partida ou disfuncional, se apresentar como animal ferido, cheio de zonas laterais, de comentários avulsos.
Não é esta uma poesia delicodoce, ainda que seja delicada na extrema engenharia dos seus versos, no modo como, entre Montmartre e um arranha-céus, entre Altamira e os derrotados da poesia (os que ficam em segundo lugar no suposto panteão das rimas e das estrofes), o sujeito ora se faz narrador distanciado e cheio de bonomia para com a Cidade e o Mundo, ora agónico sujeito em processo de deflação do engenho. Num dos momentos finais deste livro a reler, a questão do eu perdido em si mesmo revela-se. Trata-se de um poema que poderia figurar como legenda num quadro de Rembrandt, num dos seus autorretratos. Com isso é já um programa de linguagem que Barreto Guimarães propõe aos seus contemporâneos – de linguagem e de visão de mundo. “Nas photografias de outros”, eis a legenda: “Estou presente no passado de vidas que / desconheço (homens que rumam a norte / mulheres que descem a sul) em / photos / que me prenderam a cidades estrangeiras / onde o meu rosto ficou retido” […]. Nessa confrontação com o passado, aí reside a poesia do autor de Luz Última (2006), sem nunca apagar a força que vem da aliança entre narratividade e construção rigorosa dos ritmos e dos sons.»
ÂNGELA SARMENTO, in A Europa face à Europa: poetas escrevem a Europa. ILCML, Instituto de
Literatura Comparada Margarida Losa, Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2018.
João Luís Barreto Guimarães
«(…) João Luís Barreto Guimarães escreve “de dentro da vida”; a Europa que descreve parte de uma realidade física e política, concreta e referenciável, mas ultrapassa-a. É uma Europa de habitante, percorrida, sentida, vivida, logo, rememorada, pensada, construída por um sujeito, ele próprio em formação, numa espécie de Bildungspoesie que alia a injunção identitária do oráculo de Delfos – conhece-te a ti mesmo – à herança da Odisseia inaugural, no encalço da literatura e da cultura europeias, com especial enfoque para Portugal.
Do primeiro ao quarto andamentos [da sua obra], seguimos os “rituais serenos” de um enunciador que, em busca de si, (se) vai encontrando (n)a sua “tribo”, reconhecendo-se herdeiro de um património, ao mesmo tempo que se assume livre e responsável pela sua construção. Começa por se fundir com a cidade (poderia ser o Porto), numa cosmovisão quase mítica. Experimenta ruas e sonetos (dialogando com Camões, Álvaro de Campos, Concretismo); frequenta poemas em prosa, que melhor se ajustam aos “jogos de decifração” e multímodo desassossego (Bernardo Soares, Baudelaire) do canto da uma mesa de Café (“Café Corcel, Porto, 1994-1995”). Habitante de um rés-do-chão, relata, em verso livre, histórias de felicidade conjugal (Egito Gonçalves, Alexandre O’Neill, Cesário Verde); torna-se pai, não deixando de ser filho; contudo, será perante a perda do pai (e de Deus?), num “país perdido” (citando Camilo Pessanha), que alcança o auge da maturidade, e se assume a parte pelo todo. “[T]hen the letting go” dickinsoniano, numa espécie de escatologia íntima (e social), o deixar-se ir em viagem por cidades estrangeiras, muitas das quais europeias. A um adensamento anímico segue-se um condensar de referências: históricas, políticas, culturais, artísticas.
É nesta inscrição no espírito humanista europeu que se encontra a convocação explícita e polissémica da Europa. Logo no início da obra, em referência a Saramago, a uma jangada, ao Tratado de Tordesilhas, a um “país / em vias de extinção” perante a vinda de um “outro dinheiro”, reconhecemos, depois da entrada de Portugal na CEE (1986), alusões ao projeto de construção da União Europeia (1992) e às consequências geo-políticas e económico-sociais decorrentes, como a circulação da moeda única (2002). Adiante, torna-se explícito o distanciamento de Portugal face a determinados países que sinedoquicamente constituem uma Europa descrita em oscilação, com conotações quer positivas (lugar central, promotor de crescimento), quer negativas (centro financeiramente superior, mas distante, dos usurários ricos da Europa do Norte). Em contraste, Portugal é considerado “Europa / de ouropel”, aparentemente incluído no grupo, mas, na verdade, preterido pela sua aparência ilusória, enganosa, de país encarnado por uma figura atávica, o “sr. Lopes”, que atravessa os livros desde Luz Última, e se repete n’ “O filho do sr. Lopes”. É ainda convocado o fenómeno das contra migrações, tão europeu desde quinhentos, e de novo tão atual: estrangeiros, turistas; o avô emigrante, imigrantes de leste; refugiados. O enunciador simpatiza com os oprimidos; por isso, nas suas travessias (físicas e mentais), não encontramos nomes dos vencedores ou dos “batoteiros”; prefere “os heróis sem nome ao / nome dos grandes heróis”. A par destas referências à atualidade, deparamos com “a própria miséria humana” n’“[o] lodo da História”: seja na figura dos “Judeus errantes”, como no poema que cruza o êxodo dos israelitas do Egito com a deportação mais recente dos judeus para Auschwitz; seja “[n]os / prédios bombardeados (por exemplo: nos Balcãs)”; seja ainda no terrorismo que originou “a última viagem / de Ícaro”, do “alto / das torres gémeas”. Em 2013, Barreto Guimarães cita os cinco axiomas que compõem a “ideia de Europa” apresentada em 2004 por George Steiner: “Cafés. Nomes de ruas (de historiadores, filósofos, políticos, heróis). Deambular (curtas distâncias). Tradição judaico-cristã e tradição grega. Escatologia da Europa (guerras mundiais e dos Balcãs)”. Com desvios pessoais, o poeta complementa esta síntese em vários livros, até antecipadamente - Lugares Comuns, de 2000, é “todo passado à mesa do café”. Conclui o próprio Steiner: “por fim, a apreensão de um capítulo derradeiro, daquele famoso ocaso hegeliano que ensombra a ideia e a substância da Europa mesmo nas suas horas mais luminosas. // E a seguir?”.
Numa mensagem política à situação do país “a preto e branco”, o enunciador considera a partida: “[s]e ao fim do dia perguntas para / onde foi o dia inteiro / é a hora de partir (não ficar preso ao naufrágio / esperando um milagre na praia / […])”. Contudo,“[a] título de exemplo”, a opção do sujeito poético é a dos que ficam: “[n]ada os que partiram eu / fui alguém que ficou”. Perante opiniões tão lucidamente críticas, não se consideraria falar em “sebastianismo” na poesia de Barreto Guimarães; todavia recorde-se que, no início, o enunciador confessa (não sem ironia): “(estou para revelar isto há já muitos / poemas) um dia el-rei voltará: Sebastião rapaz / por onde tens andado?”. E, aproveitando a metáfora marítima, acrescenta, com ecos pessoanos: “da varanda vê-se o rio mas um rio: será tudo? não / há outros oceanos a descobrir apenas: pequenas / águas dias perturbados cumprindo um canto”. Não surpreende, portanto, que no quarto andamento, acreditando na “arte do recomeço”, o sujeito poético exiba ainda uma ardência, dir-se-ia, revolucionária (“ao lado de / Jean Valjean”: “fui alguém que resistiu – / quando me julgarem morto / vou-lhes tomar o país”. De novo, a confluência das “duas Europas" que têm condicionado o imaginário português: “a ibérica, castiça, mística e lírica” e “a central e nórdica, do mercado, da modernidade e da ciência”.
Esta mesma posição conciliadora encontra-se em Mediterrâneo, livro (e lugar) que remete para as origens. Inicialmente motivado por uma crítica “à atitude de alguns países do Norte da Europa em relação aos países do Sul” e, assim, considerando Mediterrâneo e Europa quase disjuntivamente – “desde o sítio onde a oliveira começa até ao sítio onde a oliveira já não cresce mais. Onde deixa de ser o vinho a bebida preferencial e passa a ser a cerveja. Onde deixa de ser o catolicismo a religião principal e passa a ser o protestantismo” – Barreto Guimarães assume, afinal, uma atitude contemporizadora: “[p]ortanto, o livro move-se nessa geografia e tem um espetro temporal de mais de dois mil anos. E mostra […] que, afinal, vimos todos de um caldo comum, desta História”. No regresso das viagens pela Europa surgem pois, também, “epifanias” encontradas “no bolso do casaco”: bilhetes ou rememorações de visitas a museus; a admiração por obras de arte, e mesmo a sua transposição intersemiótica para poemas de índole metafísica ou política (intertextualidade com Metamorfoses de Jorge de Sena ou Movimentos no Escuro de José Miguel Silva), ou ainda a sua transferência para seres ou situações reais transportados para o poema: por exemplo, “Modigliani”. Das obras de arte como dos museus, não são o título nem o reconhecimento institucional que interessam, mas a incipiência dos artefactos e das coleções, a curiosidade, as maravilhas singulares e singularizantes que suscitam e de que resultam; “o dom [subjetivo] da imaginação / que permite figurar tudo quanto desfigura”. (Lembre-se que os cabinets de curiosités ou cabinets of wonder, foram os precursores dos museus - cf. “Cabinet de curiosités”). Nas suas errâncias, interessa ao sujeito poético surpreender o real, em “Sicília” (nome de ilha, que facilmente evoca um nome feminino), com ressonâncias de Cesário Verde e Eugénio de Andrade, e de uma densa carga erótica (que perpassa os poemas desde o início da obra), ou em Veneza, por exemplo, “onde o belo é simetria / e o tempo: / duração”, na presença natural (ou literária – cf. Manuel António Pina; ou talvez natural e literária) do gato: “este felino / que me incendiou a alma / […] / […] e / me devolveu a certeza de que a / perecível beleza por uma vez / foi palpável”.
Como sobrevivência “à nossa própria desumanidade suicida”, Steiner) defende que a dignidade humana se encontra precisamente na “percepção da sabedoria”, na “demanda do conhecimento desinteressado”, na “criação de beleza”, e acrescenta que “[é] porventura apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se como base”. Com uma visão laica, o pensador franco-americano sugere que a Europa ocidental ponha em prática um humanismo secular, pois “[é] entre os filhos frequentemente cansados, divididos e confundidos de Atenas e Jerusalém que poderíamos regressar à convicção de que ‘a vida não reflectida’ não é efectivamente digna de ser vivida”. Encontramos uma alternativa ecuménica (em sentido lato) em “Igrejas da Europa”, onde se lê a celebração da vida nos sinos de uma igreja católica que “já foi / um templo pagão (usada / como celeiro / teatro / prisão e paiol)”, e cujos “muros foram somando / lições de arquitectura (Gótico / sobre Românico / Barroco sobre Renascentista) dando vida / à língua morta com que estas paredes / rezavam”. Talvez possamos estender esta prece a toda a poesia de Barreto Guimarães, e ver nestes muros a presença edificada da Europa, (re)visitada e (re)unificada no espaço e no tempo por um sujeito poético nómada.
A Europa da poesia de João Luís Barreto Guimarães resulta de uma articulação muito própria (exemplar; já consagrada) de todas as pluralidades que convergem aqui, neste último poema como na obra. Servindo-nos de um jogo recorrente nas composições do início, poderíamos dizer que se trata de uma Europa do sul, do sol e do sal. Europa do sul, nesse sentido metafórico, de origem mediterrânica, não necessariamente excludente da Europa setentrional. Europa do sol, da celebração solar da vida, apesar da densidade escatológica e metafísica final. Europa do sal, “o sal da língua”, tão ao gosto de Eugénio de Andrade, “cum grano salis”, a ironia, o humor, ingredientes de tantos poemas. E o amor. Talvez a solução aqui proposta para a Europa e para a vida esteja, afinal, na re-ligação amorosa. Sem totalitarismos, com liberdades – também poéticas –, todas as derivas e errâncias do sujeito podem encontrar refúgio na comunicabilidade de uma poesia plena de confluências e articulações: retóricas, literárias, físicas, históricas, económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas, míticas, afetivas. Talvez o abraço amigo, o abrigo mais necessário, seja a aceitação na diferença demonstrada por uma poesia oximórica, onde a “ ‘metáfora / resiste à metonímia’ ”. Nela, não é a lógica da identidade que impera, mas a experiência do mundo através da diferença. Será isso o amor, que o sujeito poético busca nas suas variadas formas, desde as origens. O amor filial, o amor à sua tribo, o amor conjugal, o amor paterno, o amor fraternal e solidário. Omnia vincit amor. O amor supera tudo. Continua a ser verdade. “Só o amor pára o tempo (só / ele detém a voragem)”. Nem que seja por uns instantes: “o amor inventa uma maneira diferente de durar na vida. […] Porque, todos o sabemos, o amor é uma reinvenção da vida” (Badiou). “[O] amor não escolhe entre dois / não anula: o / amor duplica”. “É preciso reinventar o amor” (Rimbaud). É preciso reinventar a Europa. “Eurôpé” – ‘aquela que tem grandes olhos’ (Martins). O enunciador, em busca de si, da sua identidade, entra em relação com o movimento do(s) mundo(s) que o circunda(m), atento ao pormenor, à falha e às possibilidades de desvio, de re-ligação. “Assim ele vai”, não “corre” (como o pintor da vida moderna baudelairiano), mas “re-para”. É preciso “re-parar”. Talvez seja este o repto de João Luís Barreto Guimarães: não o rapto da Europa, mas a Europa do(s) amor(es) con/sentido(s).»
LUÍSA OLIVEIRA, Visão, 9.08.2018
Nómada
«Quem não precisa de um manifesto a favor da "verdade que existe nas coisas comuns"? Uma bela ideia que podemos encontrar no último livro de poesia lançado pelo autor de Mediterrâneo (2016). Com uma linguagem sempre próxima de quem o lê, investida pelas paisagens quotidianas, João Luís Barreto Guimarães dá conta da passagem do tempo e das transformações que este traz.»
FERNANDO GUIMARÃES, Jornal de Letras, 18.07.2018
CAMINHOS PARA A IRONIA
«No limiar do mais recente livro de João Luís Barreto Guimarães (JLBG) há uma epígrafe de Jaroslav Seifert: "A realidade é totalmente diferente e muito pior ainda". Desce aqui a sombra que parece criar em relação aos poemas deste livro um envolvimento disfórico, pessimista. Mas algo mais acompanha esta sombra. É o imprevisível. O imprevisível aqui cria um envolvimento ou, melhor, uma figura cujo sentido é o da ironia.
O papel da figuração irónica é muito importante na obra deste autor. Ele proporciona o aparecimento de um outro texto, isto é, um sentido que é virtual. Por vezes este segundo texto passa por um outro que é o que decorre do reiterado uso de parêntesis que proporcionam não raro uma certa deriva de sentidos. Isto pode ver-se através da leitura do seguinte poema: "Só o amor para o tempo (só / ele detém a voragem) rasgámos cidades a meio (cruzámos rios e lagos) [...] É preciso conhecer os mapas / mais ao acaso (jamais evitar fronteiras / nunca ficar para trás) / tudo nos deve assombrar como / neve / em Abril. Só o amor para o tempo só / nele perdura o enigma / (lançar pedras sem forma e o lado / devolver círculos)."
Num outro poema - onde os parêntesis também ocorrem, até no seu título que é "Auto-retrato (aos cinquenta)" - a referida deriva de sentidos fica mais evidenciada: alude-se à doença "que anda por aí rondando os da minha idade)", a esta "dor que hoje sinto" para, ao terminar o poema, dirigir esta exprobração: "quem de nós nunca morreu que atire / a primeira terra" (o que nos conduz à narrativa bíblica em que "morrer" é pecar e "terra" é pedra). Fala-se daqueles que estão sujeitos à dor, à doença como se precisamente ocorresse - e há aqui uma outra fuga textual, embora implícita - o contrário do tão conhecido poema de Fernando Pessoa em que o poeta é o "fingidor" que "chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente". Abre-se então uma fenda, estabelece-se uma diferença. Será a de uma poética que algo tem a ver com a modernidade de que o surrealismo parece ser a última vanguarda ou, em alternativa, a que seria a do pós-modernismo?
É bem sabido como a pós-modernidade aposta numa subjectivação do discurso literário. Esse subjectivismo está presente na poesia de JLBG? Está. E basta reparar na instância da primeira pessoa nos seus poemas. Mas o poeta sabe dar-lhe uma outra orientação expressiva. Como? Recorrendo precisamente à figuração irónica.
A ironia nestes poemas torna-se lúdica. São um jogo com o improvável, o insólito, mas também nunca deriva para o nonsense de um imaginário que seria a dos sentidos impossíveis a que se entregou o surrealismo. A título de exemplo leia-se este exemplo que até se intitula "A título de exemplo": "Nada contra os que partiram eu / fui alguém que ficou. Apontaram-me o dedo / (dei o meu corpo à mira) / vieram pelo meu posto / esvaziei-lhes o lugar. Nada contra / quem calou / eu fui um dos que falaram - / ataram-me os pés com corda / (com as pontas fiz um laço) / destinaram-me a um canto / redecorei-o de flores. Nada contra / os que quebraram / fui alguém que resistiu - / quando me julgarem morto / vou-lhes tomar o país".
Passa por este poema, embora esteja na primeira pessoa, um sentido que desde logo se afasta do que seria uma expressão afectivamente agitada, de um desacordo emocionado quanto aos outros e que tão característico é de uma subjectividade que tanto poderia ser romântica como pós-moderna. Poderíamos dizer que no poema em questão o subjectivo objectiva-se.
Este sentido de objectividade, que assenta no espaço verbal dos poemas, vai ao encontro de uma coloquialidade que neles tantas vezes ocorre. Ela não é aquela que vem de uma tradição que seria a do "mal-dizer" dos Cancioneiros medievais e que há de chegar à ironia sarcástica e sentimental de Alexandre O'Neill. Pelo contrário, neste livro como em outros anteriores, cada poema é uma pequena narrativa. Há uma diegese que progressivamente se desenvolve ou circula, criando uma deriva de sentidos, recorrendo-se por vezes ao já referido uso dos parêntesis que podem mesmo abrir-se para acolher de um modo mais ou menos explícito tal deriva: "cada parede uma teia / (cada teia uma prisão)".
A poesia de JLBG afasta-se de uma expansão subjectiva ou confessionalmente emotiva tão característica da sensibilidade pós-moderna. Mesmo aquela deriva de sentidos que foi há pouco apontada nunca conduz a um discurso dispersivo, marcado (para que seja utilizada uma famosa expressão de G. Vattimo acerca do pós-modernismo) por uma "debilidade" em que as tensões ou dispersões humorais tantas vezes vêm à superfície. Alguns críticos, considerando as obras publicadas de João Luís Barreto Guimarães, referem-se mesmo, e muito justamente, ao trabalho oficinal que nelas se faz sentir. Mais, um certo comprazimento irónico que ganha corpo na sua poesia pode encontrar o seu reverso.
É o que acontece quando se atinge uma tonalidade que vai revelar uma maior interiorização, a qual, como se pode ver no poema que se segue, acaba por se revelar quase dolorosamente sem que comprometa o próprio desenvolvimento verbal do poema, sempre contido em si mesmo: "Junto à praia / éramos quatro percorrendo a marginal (eu / escutando meu pai / a minha sombra atenta escutando a / sombra dele). Conversava com o meu braço com / lenta / dificuldade e dava os primeiros passos / desde o lúgubre hospital / com o tímido receio de estar a incomodar. / Um passo de cada vez. Não era / de dizer tudo mas / o que dizia era nítido - / ainda guardo a memória (uma imagem (fotográfica) de me ensinar a andar esperando com um abraço do / lado direito da alma. 'Um passo de cada vez'. / Hoje avanço sozinho / pelo muro da mesma praia a sombra que a meu lado parece / saber o caminho / lembra muito a sombra dele). Só tenho de / ir aonde me leva". Esta linguagem sóbria, medida na sua simplicidade que é a do essencial, representa agora o reverso da figuração irónica que tantas vezes aparece neste livro. Livro que se intitula Nómada. Não será por acaso. Cada poema é também um caminho por onde os leitores, que nómadas são também no ato de leitura, passam sabendo que há "uma história maior por trás / da que conhecemos".»
SÉRGIO ALMEIDA, Jornal de Notícias, 29.6.2018
TUDO QUANTO CABE NUM SÓ POEMA
Novo livro de João Luís Barreto Guimarães confirma a excelência da sua obra
poética
«A realidade como matéria-prima. Ponto de partida e de chegada. Meio, princípio e fim de tudo. Eis o que move cada vez mais João Luís Barreto Guimarães, autor que parece ter apreendido a lição do conhecido poema "Não há vagas", de Ferreira Gullar, ainda que virando-o do avesso: "O preço do feijão não cabe no poema / não cabem no poema o gás / a luz / o telefone / a sonegação do leite / da carne / do açúcar / do pão".
Em "Nómada", o poeta que "divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade" afirma-se pelo contrário. Os 42 poemas que integram o seu novo livro abarcam tudo quanto lhes é dado ver, num plano mais imediato e sensitivo, mas também a dúvida, a reflexão e o silêncio.
Neles, cabem, afinal "a pastilha elástica colada à sola
do sapato", o odor inconfundível da "batata frita", "as
águas altas do Sena" e "os corvos em Birkenau".
Mas, acima de tudo, sobeja a convicção de que "o conhecimento de
tudo (quando bem acomodado) cabe no espaço [exíguo] de uma caixa craniana".
Nesta busca pela "verdade que existe nas coisas comuns", Barreto Guimarães enceta uma demanda que, embora pareça fixar-se na realidade circundante, é sobretudo interior. E se a tentativa de compreensão da vida através dos poemas encerra, à primeira vista, doses maciças de presunção ou de ingenuidade, os escritos do autor de "Mediterrâneo" reforçam a crença da importância iniludível da poesia no ato da interrogação, primeiro passo rumo ao conhecimento.
"Se ao fim do dia perguntas para / onde foi o dia inteiro / é a hora de partir (não ficar preso ao naufrágio / esperando um milagre na praia / chorando os barcos / pelo nome) ", escreve em "Falsa vida".
Não é meramente individual esse esforço. O leitor é cúmplice desse diálogo imaginário em que o poeta se debruça com um olhar inaugural perante a realidade: "Escolho o / mundo / com as pálpebras (abrindo e fechando os olhos) / escolher é excluir / excluir é entender [/ entender é conservar] ".
O tom confidente com que Barreto Guimarães explana o seu devir poético, reforçado pelo uso hábil dos parêntesis, acentua essa relação. Todavia, é na dimensão de experiência individual com leitura universal que tal cumplicidade é criada. Porque "fazer poemas é como ir / roubar / maçãs selvagens / vais à espera de doçura mas / surpreende-te a acidez".
FERNANDO SOBRAL, Jornal de Negócios, 16.6.2018
OLHARES ATENTOS SOBRE O MUNDO COMUM
«João Luís Barreto Guimarães tem, ao longo dos anos, construído um território muito próprio dentro da poesia portuguesa. São acontecimentos do dia-a-dia que espoletam o seu olhar acutilante sobre os labirintos das vidas comuns. Há aqui uma simplicidade complexa sobre o nosso mundo de dúvidas e de sonhos. "Porque/se uma chave em concreto consegue abrir/a memória/acaso consegue uma ideia (tac!) abrir uma porta em concreto?" Um mundo nómada a descobrir.»
JOÃO CÉU E SILVA, Diário de Notícias, 2.6.2018
«Nómada veio confirmar João Luís Barreto Guimarães como um dos principais poetas da língua portuguesa.»
JOSÉ MÁRIO SILVA, Expresso,
26.5.2018
O REAL ENTRE PARÊNTESIS
«Na primeira das seis partes que compõem "Nómada", João Luís Barreto Guimarães ensaia uma poética: "Fazer poemas é como ir / roubar / maçãs selvagens - / vais à espera de doçura mas / surpreende-te a acidez." O conhecimento das coisas nasce de uma disponibilidade para ver, explicitamente assumida: "Escolho o / mundo / com as pálpebras (abrindo e fechando os olhos) / escolher é excluir / excluir é entender. " Antes de ser um mecanismo de palavras, uma tentativa de construir sentido, o poema persegue "o que ainda não existe" e decide "se enfeita (ou não) o real."
Na verdade, cada poema funciona como um parêntesis dentro do qual a realidade se desdobra, sinalizando uma interrupção no fluxo do tempo. Graficamente, os parêntesis (omnipresentes, diga-se, na restante obra deste poeta) sublinham a fragmentação no discurso e assumem-se como a principal matriz estilística deste livro: não há um único poema onde não os encontremos. Eles são como nódulos essenciais: "Dentro do poema: / sons / (em redor: espaço branco) / silêncio a trabalhar." O autor não distingue a "verdade que existe / nas coisas comuns", como a pastilha elástica colada à sola do sapato ou o cheiro a batata frita, das reflexões cultas sobre a ignorância de Hamlet quanto ao seu destino (já escrito), sobre os estádios da Grécia antiga, onde muitas estátuas dos vencedores têm os nomes apagados, mas a ala onde se afixava a identidade dos batoteiros "resiste à erosão do olvido", ou o pintor das grutas de Altamira (consciente de que as sombras na parede são literais e não ideias platónicas).
"Sala de espera" é um poema que resume bem esta tensão. Num consultório médico, o sujeito poético reflecte sobre tudo o que pode caber "no espaço exíguo de uma / caixa / craniana", para concluir que o cérebro humano, capaz de explicar o universo e a mecânica quântica, também se pode entregar a desígnios menos imperativos, como o de saber quem traiu quem, e com quem, numa revista cor-de-rosa. E porquê? O hipérbato final é lapidar: "estava atrasada - / a consulta."
Da melancolia (vendo os corvos de Birkenau que "velam a morte", sentinelas de uma memória que o tempo foi dissipando) à ironia ácida (quando compara a poesia portuguesa contemporânea a um museu nocturno, vazio, onde as meninas nas molduras se entretêm no exercício da crueldade, sempre a "acirrar-se entre si", esta escrita vagueia pelos tópicos habituais de JLBG, sempre capaz de achados verbais (uma "voz desabotoada") e imagens fortes ("Os amigos que andam perdidos / deviam voltar de vez / como esses galhos partidos que se atiram a um cão / não como um seixo de praia que se lança / e fica lá").»
PEDRO ABRUNHOSA, Festival Literário Literatura em Viagem, Matosinhos,
12.5.2018
Excerto da apresentação de "Nómada"
«(...) Em primeiro lugar, o fascínio que fica da leitura deste livro, o fascínio que fica da sensação que provoca a leitura desta poesia. A poesia é um fluir, é um sucedâneo de emoções, e é um sucedâneo de emoções que decorre do usufruto das sensações que o autor vai colocando no papel, como o encadear, digamos assim, da desrealização da realidade, que é o que faz um autor. O João Luís Barreto Guimarães que é um imenso poeta – e quando eu digo poeta digo-o no sentido adjectivo, não num sentido subjectivo –, é alguém que certamente já marcou a poesia contemporânea portuguesa e, portanto, constrói um universo muito cedo, uma identidade, uma impressão digital fortíssima que decorre de uma postura humana e uma postura artística que, de resto, se não houver essa coincidência entre ambas, nem sequer existe; o artista é aquele que tem uma visão e que a partilha. E este poeta do quotidiano, se me permite o João Luís - não sei se o posso chamar assim porque é poesia do quotidiano mas é um quotidiano profundo, é uma observação que vai, como poderão ver neste livro, que vai desde a cidade que juntos, muitos de nós comungamos, o Porto, e muitas outras pelas quais o João Luís passou, também por isso o livro se chama “Nómada” -, mas é uma observação do quotidiano, do gesto quotidiano, da presença da banalidade na nossa vida que pode até ser a banalidade do trágico; há aqui uma poesia que a mim me marcou muito “Os corvos em Birkenau” (...), a realidade, digamos assim, que a arte, que a suprema arte tem no contraditório do Mal.
Que papel tem a arte neste universo, agora mais do que nunca, neste universo no século XX e XXI, em que o Mal volta a nascer, o que o João Luís Barreto Guimarães uma mais vez aqui recorda, essas camisas pretas que se voltam a envergar, esse sentido da opressão, da maldade sobre a humanidade? Uma poesia como “Os corvos em Birkeneu” é uma forma maior de exorcizarmos a nossa própria culpa perante a inépcia com que nos deixamos avassalar por linguagens homofóbicas, racistas, plenipotenciárias, prepotentes e, portanto, aí compete a todos nós – e isto não é proselitista em relação à arte enquanto factor político - mas se a arte não é política, eu não sei então o que é politico. E sobretudo politico neste sentido muito mais amplo do termo, um político que abarca os Valores, que uma vez mais se utiliza a si próprio como contraditório desse Mal universal.
De alguma forma a poesia é uma espécie de redenção, é uma espécie de salvação, é uma espécie de comunhão com o mundo, na dor. E, portanto, quando o poeta interpreta a realidade, a desmaterializa, e depois a realiza e a volta a colocar no papel com as suas palavras, porque é a sua própria realidade, compete-nos depois a nós essa interpretação que é sempre subjectiva, que é sempre pessoal, e é aí que a poesia do João Luís se assemelha, como dizia o Óscar Lopes em relação à poesia do Eugénio de Andrade, se assemelha à música.
Ou seja, há uma imensa musicalidade nesta poesia. E a musicalidade não é necessariamente, a substantiva musicalidade na qual a música assenta, o ritmo, a métrica, não é isso. Ainda por cima, a poesia livre, aquilo que pratica o João Luís, é uma poesia que é aparentemente desprovida de métrica. A métrica é um pulsar interior que está na poesia do João Luís. Há um pulsar, há um ritmo interior que já não obedece às regras da poesia clássica, mas que obedece às regras do pensamento contemporâneo, que obedece às regras do próprio pensamento interior. Nós não pensamos com métrica. Nós pensamos com a coerência do encadear dos pensamentos e o resultado da coerência desse encadeado neuronal. Quando essa coerência é, também ela, sublinhada por uma coerência emocional, quando a ambiguidade intelectual, se quiserem, no sentido artístico, é depois sublinhada por uma certa ambiguidade da escrita, também no sentido artístico – porque aquilo que é para o poeta uma frase é para cada um de nós uma realidade diferente, a entidade ampla que significa tudo e não significa nada, que significa sobretudo uma impressão que fica no final da leitura da poesia, como se a poesia fosse uma nuvem, como se fosse o perfume que fica – isso é, realmente, o grande toque mágico, é o toque, se quiserem, divino, que os poetas têm, que é deixar um perfume no ar muito depois de nós termos lido aquela poesia.
E aquilo que fica da leitura das poesias do João Luís Barreto Guimarães, de quem me confesso um imenso admirador - porque é muito inspirador para mim, é instigador de estados sensórios, é instigador de emocionalidades e, no fundo, no fundo, a arte é isso que faz, a arte é uma provocação aos sentidos -, é uma provocação à sensação, e por isso, este perfume que fica, este odor, esta latência da qual dificilmente nos libertamos, que fica, uma vez mais, para usar a palavra, da bondade genuína da escrita do João Luís Barreto Guimarães, é para mim o mais importante, é para mim, se calhar, o mais difícil.
E quando eu dizia que a poesia do João Luís Barreto se aproxima muito da música (...) ao lerem o livro vão perceber da fluência – cada leitor lê com a sua voz própria, obviamente, mas também lê com o seu ritmo próprio e obviamente que na poesia clássica, a métrica impõe-se ao leitor (...) e portanto, não há uma libertação do leitor do universo métrico e, se calhar, porventura também do universo sensorial (...) –, novas sensações produzem novas métricas sendo que a métrica que aqui está, enfim, esta decorrência do verso livre, é uma métrica por vezes assente na aliteração, na repetição, aquilo que o Jorge de Sena chamava a rima, “a rima é o eco que fica nos nervos auditivos depois da repetição de uns certos fonemas”, e o que decorre da leitura do João Luís é que não havendo uma rima também no sentido clássico do termo, há um eco interior, há uma repetição da fonética que produz um efeito melódico (...), é uma diáfana melodia que passa, e que traz atrás de si uma série de sensações, que vão sendo diferentes ao longo da poesia, e quando chega ao fim, o somatório das sensações é uma plenitude, é a isso que eu chamo o perfume da poesia do João Luís Barreto Guimarães, ou a sua imanência ou a sua latência no final da leitura (...).
E quanto tudo é poesia, nada é poesia, é por isso que é preciso sabermos distinguir a poesia. A Poesia. A poesia que é o profundo eco do pensamento, aquilo que o George Steiner dizia, com muita argúcia, a poesia do pensamento, sendo que ele definia a poesia do pensamento como a capacidade que alguns de nós têm de produzir através do pensamento coisas que estão ao dispor de todos, porque as palavras são de todos (...), é preciso ter a poesia do pensamento, a capacidade de ver para lá da realidade que todos nós vemos. Uma vez mais, nós somos donos dos verbos, dos adjectivos, dos substantivos, dos hífens, dos tiles, das vírgulas, mas os poetas conseguem dar-lhes a consistência da teoria da relatividade (...).»
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